Opinião

Letras | João Luís Barreto Guimarães (2023) aberto todos os dias OU poéticos reflexos na água

4 fev 2023 17:59

O autor recebeu o prémio Pessoa em 2022 e aberto todos os dias é o primeiro livro de poesia publicado depois dessa consagração

Quando abri o ano de 2022, neste jornal de província, com texto de opinião sobre movimento (2020) de João Luís Barreto Guimarães, gravei-o na história literária com os dados bio e bibliográficos mínimos, acrescidos da referência às várias traduções e prémios que a sua obra poética tinha recebido. Movimentei-me entre um paradigma antigo, clássico, e outro mais recente, ligado à receção-canonização-comercialização como instrumentos para introduzir um ‘objeto da arte literária’ a quem o desconhece/ia. No prazo de um ano (vale a pena referir o(s) confinamento(s) ou todos diferentemente o(s) conhecemos?), o autor recebeu o prémio Pessoa em 2022 e aberto todos os dias é o primeiro livro de poesia publicado depois dessa consagração: (re)abre 2023 (embora, antes do índice final, o leitor seja informado que os poemas nele gravados foram “escritos entre 2020 e 2022 no Porto, Leça da Palmeira, Venade, Torre da Medronheira e em algumas cidades estrangeiras.”, opus cit., p. 75, o que pode baralhar a cronologiatoponímia clássica…).

Como leitora apaixonada de poesia, ando sempre à procura do livro único e, qualquer leitor, atento aos sinais, não pode deixar de interpretar nesse espectro de sentido/indício a epígrafe final, inscrita na p. 77, de Christopher Reid: He pursued a vision of wholeness by means of collage. Nem a da p. 11, retirada de movimento, que autoriza a ler este conjunto de poemas como resposta(s) às inquietações do próprio caminho. Todas as autobiografias poéticas se tecem dos textos acumulados/ preservados na memória da arte/vida…

O que mudou no trajeto? Os pilares de organização dos poemas passou das 7 partes para os 4 sustentáculos clássicos: locus amoenus (conforto amoroso na paisagem ideal) | beatus ille (afortunado desprendimento no campo horaciano) | tempus fugit (fugacidade irreparável do tempo virgiliano ou a alimentação da natureza maternal?) | carpe diem (aproveitamento horaciano do dia presente). Cada quarto com 10 poemas, numa reconhecível simetria capaz de acalmar inquietações desenhadas pelas luzes que bruxuleiam até uma ‘curva do rio’ (p. 73) onde as luzes na água/rio voltam – melancólica, ironicamente? – ao reencontro do sentir: “[…] uma agitação inquieta. Não / demores. Vem depressa. / Não sossego / se não te falo.” O corpo desta casa ergue-se com a magnitude da solidão do poema inaugural “Aqui” (p. 17), com o reconhecimento dos lugares em nós desde R. M. Rilke com Heirsein ist herrlisch e a língua, o esperanto, em que os humanos se podem entender. Viria a propósito perceber o ‘piscar de olhos’ ao tradutor, como fazedor dos possíveis e limitados esperantos sistematizados, mas nada me autoriza a fazê-lo. A não ser a perfeição da forma e o polimento das arestas: as 4 colunas são sustentadas por um poema em que o hic et nunc e a comunicação sem barreiras é o tempo do momento, até ao final, em que a intimidade e a presença/ausência (vice-versa?) de um tu garantem os pedaços necessários à completude… Porém, “Há uma mão-cheia de coisas à espera de / acontecer. […] / […] / […] A ordem / isso não sei.”(Coisas à espera de vez, p. 31) e “O poema era o / texto (o amor o pretexto […]” (Na chegada do Outono, p. 49).

O que o poeta sabe são as palavras de outros – tantos (Soderberg, p. 15; Ritsos, p. 29; Heaney, p. 33; Larkin, p. 34; Elytis, p. 47; Celan, p. 61…) – que o atravessam e o distinguem dos que passam ao largo (“Ele fazia poemas.”, p. 22), o que é mais do que ler ou ‘apenas viver a sua vida’, por isso está sempre “de dentro do poema)” (p. 43), celebrando a leitura enigmática da poesia e do tempo na mãe natureza, reconhecendo “o eco [que] fala as / suas línguas.” (p. 56), trazendo ‘o que é feio’ (p. 63) para o poema, disponível para o mundo, “Como / quem ergue a verdade com a luva / da linguagem.” (Aberto todos os dias, p. 71). Em fuga ao renascimento, o holandês Vermeer (durante tantos dias esquecido e ignorado…) veste esta quarentena de poemas com Vista de Delft, a ilusão urbana entre as águas que correm e transportam as melancolias e ironias poéticas para os cirúrgicos (e narcísicos?) mares de outras misteriosas criações: reflexos de coração aberto à fragilidade de todos os dias…