Opinião
Letras | josé luís tinoco (2023) perseguição dos dias: a ilha solitária OU a montanha submersa
A brevidade dos poemas; as temáticas do quotidiano desfiadas entre gritantes opostos e dolorosas contradições ou as magníficas imagens plásticas de metáforas que escorrem dum pincel verbal
Nascido em Leiria a 27 de dezembro de 1932, mestre José Luís Tinoco faz parte da família leiriense que já não existe e, talvez por isso, seja um exilado de nós…
Filho de Agostinho Gomes Tinoco, docente e reitor do Liceu Rodrigues Lobo, em Leiria, organizador das Horas de Arte (década de 30 do século passado), diretor do Círculo de Cultura Musical, do Museu e do Arquivo Distrital de Leiria (que então englobava a Biblioteca Pública) e de Maria Carlota Tinoco, discípula de Viana da Motta, pianista/concertista e professora de piano, teve como irmão mais velho João José Tinoco, que também era arquiteto e pintava – a adolescência do Mestre alimentou-se das marcas da pintura do irmão, afirmando assertivamente que o irmão teria sido um excelente pintor se não tivesse enveredado pela arquitetura. O Mestre é pai de João Tinoco, designer gráfico, e de Luís Tinoco, compositor e professor e eu lembro-me de ter escutado com delícia no Banco das Artes, em Leiria (a convite da estimada Ana David), o saxofone de um neto dele (Bernardo Tinoco) quando tive o privilégio de participar numa primeira sessão de abertura ao público de alguma da poesia do Mestre, que comentei com alguma humildade e procurei analisar sem ‘decepar com bisturi’ castrante.
O meu propósito, neste hic et nunc de texto de opinião, não é descrever o ambiente familiar e artístico em que cresceu, muito menos as braçadas da árvore artística em que a sua mente e sensibilidade têm frutificado (a música e o jazz; a arquitetura; a pintura; a ilustração; o cartoonismo; o grafismo; a música; a composição; a escrita de letras musicadas para Carlos do Carmo, e outros nomes do fado e do Cancioneiro Nacional; o jazz…); nem as homenagens da Câmara Municipal de Lisboa (2014), com a presença e participação de nomes marcantes da área da canção, do fado e do jazz; ou o Prémio de Consagração da Carreira (2015) pela Sociedade Portuguesa de Autores; ou a medalha de prata da cidade de Leiria (2016). Pouco sei e não sou especialista de nenhuma desses belos troncos de árvore; porém sou esteticamente sensível a todos eles e, além de ter a sorte de viver há quase 40 anos em S. Pedro de Moel (localidade/lugar para a/o qual o Mestre idealizou moradias nomeadas para o prémio Valmor), tive o privilégio de ser amiga da Ana David e de termos desejado – com fragilidade insular de mulheres, desafiadoras de montanhas submersas e de Sísifo… – ler a POESIA (e não apenas ou só ou mais ou menos do que isso, que é tanto…) do Mestre e dar-lhe corpo num livro. O parto ocorreu na Igreja da Misericórdia de Leiria (que tem agora umas siglas específicas: não o culto católico e cristão ortodoxo; a cultura como ‘salvação/educação’ da comunidade…) durante este maio, integrado na Ronda Poética 2023, com o belo livrinho de poemas perseguição dos dias.
Sobre esse objeto físico de 87 páginas poderia falar com a argúcia da professora de Literatura Portuguesa de ensino superior e chamar a atenção para o grafismo exemplar; a ausência total de maiúsculas (nem no nome do autor/poeta ou sequer do título escolhido…); a brevidade dos poemas; as temáticas do quotidiano desfiadas entre gritantes opostos e dolorosas contradições ou as magníficas imagens plásticas de metáforas que escorrem dum pincel verbal – mas vou também abdicar do meu avental e sentar-me com delícia no ofício de ler com prazer e deixar cada leitor iniciar-se no mistério à sua maneira, íntima e pessoal. Além do mais, a brilhante e breve, ou tão séria e rigorosa na escassez das sábias palavras de Luís Filipe Castro Mendes, durante a apresentação (e que abre também um pequeno prefácio do livro) justifica e sanciona o meu silêncio.
Atrevo-me a pedir que se inebriem com início dosem/para os que ‘rompem do chão à noite’ (opus cit., p. 13) e cheguem ao fim com o ‘não esquecer que uma ilha é afinal / uma montanha parcialmente submersa’ (p. 87).
Por mim, e sei que a Ana David está comigo, desejaria, ilha solitária que sou, de me seque me fosse concedida a honra de dizer apenas três poemas deste livro no regaço da igreja de S. Pedro de Moel, com as ramagens de Mestre Joaquim Correia: ‘descubro a voz que a medo se insinua’ (p. 37), ‘falo-te para que existas’ (p. 60) e ‘das várias faces da solidão direi apenas’ (p. 61). O poema de rosto e o de epílogo ficariam sublimes na voz de Ana David. Assim o exilado nos permitisse voltar a povoar este ‘lugar literário’, não com as suas palavras musicais – com a sua poesia-arte – e o saxofone do neto do Mestre se misturasse jazzisticamente como uma montanha erguida para sustentar a fragilidade das ilhas femininas e maternais: úteros de vida & arte.