Opinião

Letras | Ler Lídia Jorge

27 ago 2023 09:00

São violentas as histórias de LJ porque é violenta a realidade que vivemos, mas a sua escrita suave, branda, quotidiana como que atenua o trágico

É sempre um assombro ler Lídia Jorge (LJ). Sejam os seus artigos ou ensaios, os seus contos e, mais ainda, os seus romances.

O Vale da Paixão (1998) terá sido o primeiro livro que li, mas logo, quase compulsivamente, fui lendo os romances que foram saindo, quase todos: A Noite das Mulheres Cantoras (2011); Os Memoráveis (2014) uma extraordinária alegoria dos heróis da Revolução de Abril e talvez o meu favorito; Estuário (2018) que toca com a violenta leveza da escrita de LJ os profundos transtornos do pós-crise financeira de 2008; O Amor em Lobito Bay (2016) uma coletânea de quatro inquietantes histórias de amor (cruel, por vezes). O perturbador O Vento Assobiando nas Gruas (2002), sobre “a contradição entre o discurso português da tolerância e a discriminação com que tratam os imigrantes”; ou Combateremos a Sombra (2007) que prossegue na reflexão crítica sobre a nossa História recente (o início do milénio) – a realidade assombrosa das redes do tráfico da droga e o medo de falar.

Recentemente, por questões ‘semi-profissionais’, mergulhei na leitura de O Dia dos Prodígios, o primeiro dos seus romances (1980) que retrata o descomunal atraso de um povo completamente esquecido que (sobre)vive no Portugal rural das terras algarvias e a forma tacanha e desconfiada como recebe a notícia da Revolução dos Cravos. O espantoso neste livro não é tanto o tema, se bem que muito bem captado, mas a forma absolutamente revolucionária com que é escrito: “um marco da nova linguagem na literatura portuguesa (…) a ‘desnaturalização’ da realidade histórica, com incidência sobre o realismo o realismo mágico, a oralidade, o mito e o folclore como parte do mundo rural arcaico e a representação do ‘feminino’”. (in Colóquio/Letras 205; p. 55)

É este estilo de escrita que vai reverberar ao longo da obra de LJ como constatamos em O Cais das Merendas (1982) e em Notícia da Cidade Silvestre (1984) que, com O Dia dos Prodígios, formam a trilogia que aborda de forma ‘anti-histórica’ o período pós-revolucionário (entre o verão quente de 1975 e o 25 de novembro) e como o povo anónimo o viveu e sofreu: na ruralidade mais profunda, no primeiro; no abrupto despontar do turismo no litoral algarvio no segundo, e na realidade citadina, numa Lisboa empobrecida, no terceiro.

De notar a dimensão sociocultural das personagens que espelham as margens culturais, históricas e sociais silenciadas (como é o caso da mulher) na construção da memória coletiva do nosso passado recente.

Depois da leitura e releitura atentas de O Dia dos Prodígios, e talvez para me escudar de pegar em Misericórdia (2022) (de que falarei mais tarde) por pensar que a temática iria estilhaçar-me o ânimo (não estilhaçou…) lancei-me n’ O Jardim sem Limites (1995), este sim, romance de se ficar sem fôlego de tão violento, apesar do belo título, da claridade de Lisboa, da juventude das suas personagens.

São violentas as histórias de LJ porque é violenta a realidade que vivemos, mas a sua escrita suave, branda, quotidiana como que atenua o trágico.