Opinião
Letras | Mário Cláudio (2023), Teoria das Nuvens OU a velocidade dos dias
A espera traz o silêncio, o lugar da morte, e poucas respostas para a ambição da organização do mundo. Só a escrita de Mário Cláudio o sabe dizer com um vagar e uma excelência refinada de qualidade
Mário Cláudio é o pseudónimo literário de Rui Manuel Pinto Barbot Costa (Porto, 1941): multifacetado escritor de ficção, crónica, poesia, dramaturgia, ensaio, literatura infantojuvenil, artigos na imprensa nacional e internacional, palestrante e conferencista sobre temas literários.
À sua formação em Direito seguiu-se a de Bibliotecário-Arquivista, com pós-graduação em “Master of Arts in Library and Information Studies” (bolseiro da FCT em Londres), e foi professor em várias instituições de ensino superior, no Porto. Aí recebeu a medalha de Honra da Cidade e foi condecorado com a Ordem de Santiago de Espada.
Em 2006, o ministério da cultura francês atribui-lhe a comenda de “Chevalier des Arts et des Lettres” e em 2019 foi investido Doutor Honoris Causa, pela Universidade do Porto. Recebeu inúmeros prémios e muita da sua vasta obra está traduzida em inglês, castelhano, francês, italiano, alemão, húngaro, checo e croata. A Sociedade Portuguesa de Autores apresentou-o como candidato ao Prémio Nobel da Literatura. Publicou em 2024 Diário Incontínuo, com início em 1958 e prolongamento até à atualidade, onde o seu processo de escrita é uma das temáticas.
Sou, de há muito, leitora prazerosa dos seus livros, sem contudo ter percorrido todas as viagens. Respirei e deliciei-me com Um Verão Assim (1974), Amadeo (1984), A Fuga para o Egipto (1987), Quinta das Virtudes (1990), Tocata para dois clarins (1992), Peregrinação de Barnabé das Índias (1998), Oríon (2003), Gémeos (2004), Camilo Broca (2006), Medeia (teatro, 2008), Boa noite, senhor Soares (2008), Tiago Veiga, uma biografia (2011). Mais de dez anos afastada da sua escrita rica e pormenorizada, detalhada até à exaustão de um ‘paisagista da alma humana’, transformei-me de novo numa surpreendida e grata leitora.
Teoria das Nuvens. Fábula Urbana, publicado no verão passado, evidencia o forte pendor dramatúrgico da escrita de Mário Cláudio, registado com o elenco das personagens, no início deste novo romance, como mnemónica para o leitor, já que os cruzamentos e entrelaçamentos ao longo das três grandes partes (ou atos) vão ser num crescendo tal que exige concentração e inteligência… A parte I, com 3 capítulos, pode ser lida como uma introdução: o narrador na 1.ª pessoa (que se confunde com o autor-investigador), foca-se de fora para dentro na personagem principal, a problemática bibliotecária Bárbara, na sua relação com Guilherme (investigador sobre San Juan de la Cruz), atual companheiro, com Carlos, ex-marido, com a obsessão por Renatinho, o filho adotivo, e os seus problemas de saúde; a viagem de Carlos e Guilherme a Toledo, improvável dueto à volta da investigação (com abertura para Damião Sepúlveda de Vasconcellos, arquiteto e colecionador); cartas de Damião ao filho adotivo Guilherme, com revelação dos tesouros (relíquias de San Juan de la Cruz?!) que (talvez) possui e o filho e sobrinho natural procuram ‘guardar’, sendo Bárbara convocada para ‘vigiar’ o apartamento dele, não conseguindo evitar que – provavelmente – o sobrinho Ricardo se aproprie de algo.
A parte II, também com 3 capítulos, corresponde ao adensar da intriga, com o afastamento de Bárbara da vigilância do moribundo Damião e efabulação pela fotografia, com uma teoria acerca do que as nuvens nos deixam ver, i.e., a fuga ao sofrimento pela morte do filho, internada na psiquiatria, e atenta às visitas; viagem de Guilherme a Granada e mudança para casa de Bárbara, para acompanhar a sua recuperação, e paixão por Paula, a empregada desta, que engravida; Bárbara acaba por aceitar o fruto daquela união, o bebé Renatinho II, que lhe ameniza o convívio com os pais (que se casam) e liberta o triângulo de confrontos; nova carta de Damião; um encontro de Bárbara e Guilherme para festejar a finalização da tese, viagem de Guilherme e Damião a Salamanca, nova mudança de Bárbara para casa de Damião, com dedicação à fotografia até à morte deste.
Na parte III, que mantém a simetria dos 3 capítulos, Bárbara constrói o seu isolamento com Renatinho II, reforma-se antecipadamente e muda-se para uma casa na falésia, donde se divisa a foz do rio; o menino acaba por fugir para o tabuleiro da ponte e a apatia de Bárbara deixa-a indiferente ao conhecimento da morte do seu primeiro e único filho natural, recusando tomar conta do neto, com quem não tinha ligação afetiva; Guilherme submete-se às suas provas de doutoramento, e passa a viver uma medíocre união familiar com Paula, sem se preocuparem com o destino do filho. Finalmente, o ‘tesouro’ de Damião é colocado à venda por uma leiloeira; Guilherme tenta certificar-se de que nada existe sobre ou de San Juan de la Cruz, e sente-se traído…
Este país das nuvens (o de W. Blake?) é, no fundo, a loucura da velocidade dos dias, em que a espera traz o silêncio, o lugar da morte, e poucas respostas para a ambição da organização do mundo. Só a escrita de Mário Cláudio o sabe dizer com um vagar e uma excelência refinada de qualidade.