Opinião
Letras | O regresso de Júlia Mann a Paraty
Nos longínquos anos 60, Teolinda Gersão era assistente das Literaturas na Faculdade de Letras de Lisboa
Órfãos que ficámos quando, de um dia para o outro morreu o Professor Monteiro Grilo – o poeta Tomaz Kim – que nos dava Teoria da Literatura, foi uma corrida às suas aulas.
Era de Germânicas. Doutorou-se na área da Literatura Alemã, foi para Berlim, viveu dois anos no Brasil, e voltou a Lisboa como professora catedrática da Universidade Nova.
Em 1981, publicou o seu primeiro romance O Silêncio que logo granjeou o prémio do PEN Club.
Desde então não deixou de escrever novelas, contos e romances – muitos deles traduzidos em várias línguas – tendo sido distinguida com diversos prémios.
Em janeiro último saiu aquele que me parece ser a coroa de glória dos escritos da autora: apresenta uma triangulação imaginada entre três personagens de cúpula das letras e da ciência do século XX europeu. São eles Sigmund Freud, o Nobel Thomas Mann e a mãe deste, Júlia Mann, também ela mulher de cultura.
Ao leitor poderá parecer que vai ler três novelas distintas, mas de facto são três escritos muito bem articulados entre si em que é a terceira, a dedicada a Julia Mann, que vai fornecer a cola da obra no geral.
O primeiro terço apresenta-nos Freud em dezembro de 1938 no seu exílio dourado no «agradável subúrbio londrino», onde, porém, se «sente um estrangeiro», contestado já por alguns e com os seus livros queimados na Alemanha.
Um Freud que tristemente constata que o seu mundo, «a Europa central e a cultura que me formou e inspirou, ficaram definitivamente para trás. A Áustria findou em Março passado, anexada à Alemanha nazi e mergulhada em trevas».
E é neste estado de alma que se dirige a Thomas Mann apontando-lhe, a partir do que dele conhece e à luz da sua ciência, as suas fraquezas, nomeadamente a sua tendência homossexual e os ciúmes do irmão Heinrich também ele escritor.
Na segunda parte, Mann imagina, com toda a frieza e sobranceria alemãs, uma conversa com Freud em dezembro de 1930 em que, para além de negar as qualidades da psicanálise, enaltece cada uma das suas obras literárias – cume a que Freud nunca ascenderá – nas quais pretende sublimar os espinhos que são a sua relação com Heinrich e o casamento com Katia, a herdeira judia rica.
A última é a parte poética da obra e a que dá o nome ao livro: Julia, nascida em Paraty, de pai alemão e de mãe brasileira que perdeu aos seis anos, é bruscamente trazida para a Alemanha sofrendo uma separação brutal da sua existência solar de menina do Sul.
E agora, já velha e sozinha, num afogamento (ins Wasser gehen) imaginário, regressa à sua terra natal por rios e mares, enquanto recorda circunstanciadamente, num belíssimo monólogo interior, toda a sua vida, toda a sua família, a educação luterana, o casamento sem amor, os filhos, o seu total apagamento enquanto mulher, mãe, «mestiça, sinónimo de inferior».
Texto magistralmente escrito e construído, vale mais ainda pela quase impercetível fusão entre a imaginação e a profunda erudição.
Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990