Opinião
Letras | Regressos de Manuel Teixeira-Gomes
A crítica é feroz, a ironia é jocosa e aqui [a crónica “Lisboa”] ressalta o erotismo, a estética do corpo
Em boa hora as editoras começaram a recuperar as obras literárias portuguesas da primeira metade do século XX: por esquecidas, pior ainda, por desconhecidas. Mercê do elevado analfabetismo, pouco ou nada se lia – e pouco se lê – e mesmo muitos dos que tinham a ventura de frequentar a escola primária, por aí se ficavam – havia que ir trabalhar – e assim desconheciam por completo os grandes nomes da nossa poética: em prosa, menos ainda em verso.
Depois da Revolução, apenas depois dos tempos do processo revolucionário e da estabilização, a escola começou a abrir-se a todos e as obras literárias começaram timidamente a ser consideradas: Sophia para os mais novos, Eça, Pessoa, um pouco de Torga, de Camões e de Mestre Gil e a Sibila para os outros e depois, claro! Saramago.
Ignorados os grandes neorrealistas, os presencistas, Virgílio Ferreira, o grande Sena, Agustina, sem nomear os finisseculares completamente desconhecidos.
Mas sim, vamos vendo reeditados Ferreira de Castro, Agustina, Sena e recentemente Regressos (Quetzal, agosto, 2024) do escritor/presidente da República Manuel Teixeira-Gomes (1860-1941), publicado pela primeira vez em 1935 pela Seara Nova.
Prefaciado por Urbano Tavares Rodrigues, grande estudioso de toda a sua vida e obra, e por Francisco José Viegas, seu atual editor, e com o subtítulo “uma visitação a Portugal, à memória e à melancolia”, Regressos é composto por doze pequenas composições que rememoram passeios realizados por Portugal antes de 1900. Os primeiros, em modo fragmento, foram escritos entre 1916/17 e recordam Évora, Alcobaça e Sintra. Só depois de 1928, já em Bougie, na Argélia – onde se autoexilou em 1925 e de onde nunca regressou a Portugal – o autor lançou mão de pequenos apontamentos e da sua brilhante memória para escrever os restantes.
Ao estilo de literatura de viagem, já praticada por Ramalho Ortigão, Raul Brandão, Garrett – e mais tarde por Saramago – é uma maravilha passear-se o leitor pelos sítios seus conhecidos ou não, pintados por quem tão bem sabe usar as palavras, a sua musicalidade e ritmo desenhando, de memória, sítios e paisagens. Não se pense, porém, que ficamos pela descrição: a propósito de um areal, um jardim, uma flor, Teixeira-Gomes insere personagens que introduzem episódios divertidos usando de uma ironia que nunca poupa o atavismo, a incultura, o desmazelo pátrios, senhor que era de uma vastíssima cultura e muito viajado. Exemplo em “O Museu dos Coches”. (p.67)
Salientaria dois textos: “No Algarve” (p. 79), a sua amada terra, (nado e criado em Portimão) que descreve e relembra em emocionado pormenor exigindo ser nomeada como a verdadeira Hélade natural.
O outro, o mais longo e mais truculento, é “Lisboa” (p. 147) onde se passeia com António Nobre, Fialho, Gomes Leal em grande estúrdia, visitando prostíbulos, ao mesmo tempo que frequenta as festas e jantares da nobreza – ele, ferrenho republicano – e de importantes políticos estrangeiros. A crítica é feroz, a ironia é jocosa e aqui ressalta o erotismo, a estética do corpo, objeto do desejo tão presentes na escrita de Teixeira-Gomes.