Opinião
Letras | Richard Zimler (2023), A Aldeia das Almas Desaparecidas. Aquilo que procuramos está sempre à nossa procura. Parte II OU o mistério da redenção de cada intimidade...
Isaaque Zarco viajará mais do que antes, sobretudo dentro de si próprio e da sua capacidade de resistência à dor
O sinal de Richard Zimler chegou no mês de março, mas só agora, passado praticamente um ano sobre a leitura da parte I, pude finalmente deleitar-me com a parte II, repleta de novos mundos e de círculos cada vez mais alargados de aprendizagem.
Isaaque Zarco viajará mais do que antes, sobretudo dentro de si próprio e da sua capacidade de resistência à dor, a caminho da paciência pacífica e arduamente trabalhada para poder ser útil e instrumento de salvação de outros judeus seus amigos. Talvez seja essa a mensagem mística que deixa ao leitor, no final desta parte II:
“A gratidão fez de mim um homem paciente.
Terei feito parte do anjo Rafael para Flor, Samuel, Lena, Sálvia, Lisa e Luzente? E para os meus outros amigos? E mesmo para com quem me cruzei apenas brevemente ou de quem já não me lembro? Espero que sim.
E que papel terei eu na sua vida, estimado leitor? E para quem terá estado a trabalhar disfarçado na vida que leva?
Bata em si próprio como se batesse a uma porta!” (p. 566)
Os lugares vão desde Salamanca – onde cuida da avó, doente com o ‘Fogo de Santo António’; disputa sobre a permanência e acaba por se tornar também um ‘curandeiro’ incansável ao lado e como ajudante da avó; é informado da prisão de Jácome em Madrid pelo Santo Ofício – à aldeia de Ciudad Rodrigo e ao Porto – onde retoma o seu quotidiano profissional como alfaiate e procura reconfortar William do desgosto com a prisão do amigo, passando pela continuidade das sessões de marionetas na congregação judaica e por momentos de ritualização sexual num bordel, sem lhe escaparem as questões éticas ([…] Hyacinthe e todas as outras mulheres e crianças a trabalhar num bordel eram tão reais como eu.” p. 104) – ao vale entre Castelo Rodrigo e Vilar Torpim – para se encontrar com Samuel e Maria, C. e Ana e os filhos, bem como outros velhos amigos e conhecidos, e ficar conhecedor das várias histórias místicas da família, reveladoras de enigmas insolúveis, semelhantes a alguns mitos gregos – e finalmente Inglaterra, onde a convivência com os ‘quacre’, o leva a conhecer Elias e família, descobrindo em Lisa uma das melhores razões para constituir família, livre de preconceitos e com aceitação da pluralidade de crenças.
Afinal tudo passa pela questão da identidade do próprio Isaaque e do entendimento sobre a revolta com a expulsão que o seu pai lhe tinha feito. As respostas não são fáceis de aceitar, mas há que ultrapassar o sofrimento, ser resiliente contra a dor (e a descrição do auto-de-fé, em que a avó é queimada, ou as torturas de que é alvo pela Inquisição, e lhe quebram os ossos das mãos, são pungentes e transportam o leitor num movimento alto e arrebatador de compaixão…) e continuar a ter um motivo forte para viver e salvar outros judeus.
A opção pela narrativa autobiográfica, que se mantém e agudiza com o amadurecimento de Isaaque, talvez seja o traço estilístico mais marcante desta II parte, permitindo ao leitor acompanhar os ziguezagues da reflexão e da consciência deste narrador, atormentado pela violência desde menino, até alcançar a paz possível em adulto. O que justifica a dimensão do discurso e a crença no poder salvífico da literatura:
“Não tenho pressa de compreender mais, nem estou ansioso por saber o que o futuro me reserva. Pelo contrário, fico bastante satisfeito em avançar tão devagar quanto possível.
E estou contente por ter escrito tanto, pois acredito que narrativas como a minha vão acabar por destruir a floresta do avesso – e privar os sacerdotes que aí residem do seu poder.” (p. 565)