Opinião
Letras | Rodrigo Guedes de Carvalho (2020), Margarida Espantada OU a desconstrução da família
Quando escrevi, em 2018, sobre Jogos de Raiva, de Rodrigo Guedes de Carvalho, encontrei um ‘livro duro’, com carga catártica; porém, em Margarida Espantada, de 2020, é o autor quem se inscreve deliberadamente neste registo perigoso, bem dentro do espírito dos tempos em que (sobre)vivemos
Na contracapa afirma:
[…] Gosto da ficção que é número arriscado de circo, com fogo e espadas, que nos faz chegar muito perto da queimadura que não vamos realmente sentir. Mas reconhecemos.
O romance enreda o leitor à volta de uma família – a família Duval – com casa entre Colares e Sintra, e acompanha a desconstrução de teias que, hipoteticamente, já estavam à espera desde a infância. Neste sentido, Guedes de Carvalho continua a revelar-se um cultor da psicologia ‘espantada’ e destroçada em que o século XXI mergulhou de forma abrupta.
Enquanto a escrita enxuta, direta e surpreendente do narrador omnisciente, evoluiu sempre sem paragens desnecessárias (por mais cenas psicanalíticas de divã que sejam convocadas; ou flash-back recursivos ampliando a plurissignificação), a estrutura do romance constrói-se sobre 40 capítulos que correm ao ritmo da tragédia familiar. Dolorosa em demasia para um simples trilher.
António Carlos é o irmão mais velho, um ator famoso em certos círculos, com uma relação de violência com a mulher, Isabel Rita, e com a amante. Manuel Afonso, o irmão seguinte, desportista (com tendência para engordar) e técnico de computadores, casado com Sara Lúcia, vive a experiência gratificante do aparecimento de um bebé difícil e ‘chorão’ em idade já avançada (que o salva do divórcio…); vai sofrer a dor existencial-visceral de se deixar adormecer sobre o bebé e de o sufocar, tornando-se um ser vulnerável a partir daí. Margarida Rosa é a menina independente, crente de que a vida não lhe pode causar dano, fotógrafa (do agora), presa dos demónios da depressão e que a mãe julga incapaz para estabelecer certo tipo de relações. Joana Ofélia foi o benjamim da família, talvez a mais bem-sucedida – e, não por acaso, ligada à psicologia, e aos registos escritos em cadernos íntimos.
O leitor também fica a conhecer a mãe, Maria do Carmo, e o pai, Carlos Duval, e a dimensão violenta do relacionamento deles; mas é depois da sua morte no acidente do voo 470 das Linhas Aéreas de Moçambique, e da decisão dos filhos sobre a ocupação da casa, então vazia, que o clímax se ergue. A casa continha uma coluna antiga, com hieróglifos decifrados por Joana Ofélia: “Corta as correntes e libertas-te, corta as raízes e morres.” O psicólogo forense, Paulo Paulino, e a inspetora Aida Vanda serão os destacados da Polícia Judiciária para investigar o suicídio de Joana Ofélia. Os fantasmas de Margarida Rosa libertam-se e mata(salva?) o irmão Manuel a tiro de caçadeira; depois afoga-se:
[…] Margarida Rosa jurou em pequena que nada nesta vida lhe causaria dano. Portanto, se não surgir nenhuma alma reconhecível, qualquer corpo falante ou só aparecido num fugaz clarão, então que seja um silêncio bruto.
Que venha a pedra sobre o assunto. O fim da dor. […] (opus cit., 283)
Desconstrução da família? O poder encantatório da(s) sombra(s) sobre nós…
Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990