Opinião

Letras | Uma Autobiografia em modo V. Woolf

1 jul 2023 12:27

Toda a ação jorra diretamente do interior do pensamento de quem narra, tão próxima está da sua corrente da consciência com todos os seus meandros e conexões. Um romance das profundidades do eu

As minhas aulas de Leituras deste ano na academia sénior Sempraudaz (sempre no âmbito da Literatura Portuguesa do século XX) subordinaram-se ao tema “Literatura no Feminino”. Não por qualquer tique feminista, mas para mencionar tantas mulheres (excelentes) escritoras cujos nomes nos são completa e injustamente desconhecidos.

O levantamento de tantos desses nomes faz-se mais ou menos profusamente consultando as velhas histórias e dicionários de literatura (digo velhos, porque atuais e atualizados não os há) bem como coletâneas de bons críticos literários que, infelizmente, vão também rareando.

O problema põe-se quando queremos ler ao menos um dos seus livros e não se consegue porque estão esgotados há anos. A própria Agustina só recentemente tem sido reeditada; imagine-se querer ler uma Irene Lisboa, uma Maria Lamas, uma Fernanda de Castro, uma Isabel da Nóbrega, para falar apenas em algumas.

Assim, grande foi o espanto quando vi nas livrarias uma reedição da Autobiografia de uma Mulher Romântica de Natália Nunes (1921-2018), escritora multifacetada que já aqui trouxe com o romance Vénus Turbulenta.

A Autobiografia foi o segundo livro que Natália Nunes “editou”, (editou, diz J. Gaspar Simões, “porque esta escritora, consagrada em qualquer outro país … depois de enviar o seu manuscrito a numerosos editores, viu-se obrigada a custear as despesas de composição e impressão”) em 1954, dois anos depois de se ter estreado com o extraordinário livrinho Horas Vivas, em que uma menina nos conta episódios da sua vida, dos sete aos dez anos, “cheios de perplexidades, de dores, de inebriamentos” (M. Poppe).

A intriga é simples: Clotilde, a narradora protagonista, bastante abatida pela recente morte do marido e de uma subsequente paixão inesperada e malsucedida, escolhe refugiar-se (de si própria talvez) numa vila de província a pretexto de dar umas aulas de alemão num colégio de meninas. Sem conseguir “parar a consciência”, nem dormir, resolve fazer o reconhecimento físico da vila, caminhando pela floresta até ao mar tentando talvez, junto com a natureza, uma autoanálise que a serene. Esta deambulação física e psicológica preenche o primeiro capítulo da obra e pode dizer-se que se trata de um pedaço de prosa do mais belo, do mais poético, do mais rico em termos de escrita, de pensamento, de erudição, de cientificidade, de apropriação do léxico que se pode ler. Na senda de um Raul Brandão, de um Teixeira Gomes.

Depois deste assombroso capítulo introdutório, a fim de ocupar o tempo livre e de dobar a meada emaranhada que é a sua consciência, Clotilde resolve escrever a sua autobiografia.

Pode fixar-se o valor desta obra, escrita numa época ditatorial, na divulgação da vontade de uma mulher que, bem-nascida, culta, inteligente e conhecedora de vivências femininas mais abertas, aspira a afirmar-se diferente; pode atribuir-se-lhe valor histórico, sociológico, psicológico, literário – tudo isso é certo. Mas seguir os monólogos interiores de Clotilde remete-nos de imediato para uma Mrs. Dolloway. Toda a ação jorra diretamente do interior do pensamento de quem narra, tão próxima está da sua corrente da consciência com todos os seus meandros e conexões. Um romance das profundidades do eu – bem ao estilo de V. Woolf.