Opinião

Letras | Uma Vida de Aldeia, de Louise Glück

11 jun 2021 20:00

Louise Elisabeth Glück (22 de abril de 1943, Nova Iorque) é autora de mais de uma dúzia de livros de poemas e uma coleção de ensaios

Entre as suas múltiplas distinções encontram-se o Pulitzer, o National Book Critics Circle, o Los Angeles Times Book e o Wallace Stevens, da Academia de Poetas...

Com esta obra, Louise Glück vê reconhecida o seu talento tendo-lhe sido atribuído o Nobel da Literatura em 2020.

Poderíamos apelidar a sua poesia neste livro, de poesia da vivência lenta, do saudosismo e apologia da simplicidade, a profundidade dos sentimentos que nos acompanham no crescimento, ou a beleza da vida no campo no início de tudo.

Amar começa ali como desejar um dia nos despojarmos de todo o mundo e terminarmos também o que um dia por ali começou.

Evoca um mundo mediterrânico que me tocou desde o início da narrativa.

A poesia faz parte do meu ser ainda antes de eu imaginar que ela para mim seria quase uma experiência religiosa senão mesmo espiritual.

Voltei à aldeia onde cresci, onde tanto desta obra me tocou por um paralelismo absolutamente indissociável.

A praça, a igreja, os novos e os velhos, o amor que começa nas festas ou nos riachos onde os amigos se juntam. A fé e a inocência.

Tudo, mas tudo tão vívido, que pareciam um retrato fiel da minha própria vivência em garoto.

Li no mesmo fim de semana em que visitei essa aldeia em Trás-os-Montes e tudo fez enorme sentido.

A poesia devia ser muitas vezes assim, acessível ao primeiro toque.

Apesar de dérmicas, as sensações com Glück atingem uma profundidade que só se apercebe como corte profundo e tardia cicatrização - sentimos afinal o que faltava na sensação primária.

A beleza que transmite da infância e adolescência não revela o quanto na sua vida privada o oposto foi presença.

Talvez a “religiosidade” dos autores gregos e latinos lhe tivessem feito companhia na fé por melhores dias, fazer surgir através de imagens universais, uma poesia carregada dessa herança clássica, expiando os pecados da sua humanidade, abordando enfim, a fragilidade essencial dos seres humanos.

Sem dor e sem a desesperança não se encontra o seu oposto. A sua poesia emerge desses opostos para se fazer vida a partir do que é complexo e a nós chegar com tempo. Deve ler-se com tempo, mas com tempo se ter vivido tanto disto que nos traz a esta (re)descoberta.

“Após o primeiro Inverno, o campo despontou outra vez./ Mas já não havia sulcos ordenados./ O cheiro do trigo persistia, uma espécie de aroma distraído,/ mesclado com várias ervas daninhas para as quais/ ainda não se encontrou uso humano (...) Afinal a natureza não é como nós;/ não tem um armazém de memórias./ O campo não fica com medo de fósforos,/ nem de raparigas. Esquece/ até os próprios sulcos. É destruído, é queimado,/ e um ano depois está vivo outra vez/ como se nada de invulgar tivesse acontecido.”

Ler este texto se possível com audição contínua de Colour, de Pete Josef, porque a arte faz-se do acaso e desses universos imaginários.

Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990