Opinião
Literatura | Gramática da Fantasia… (Re) inventar a esperança
Queridos amigos desse lado, vocês que nos tempos que correm apenas me podem ler, ouvir ou ver via qualquer ecrã de trazer por casa ou no bolso…
Escrevo-vos hoje e sempre com o coração, só que desta feita apertado…
Habitualmente venho aqui uma vez por mês sonhar convosco, falar-vos de livros, de cultura, de artes e educação, de partilha inter-geracional, sobre cidade e espaço público, sobre comunidade e comunidades…sobre pessoas, pedindo emprestada ao Rodari uma gramática da fantasia, de energia positiva e esperança e uma vontade de partilha, criatividade e afetos que nos amplia como pessoas, venho falar-vos de projetos e de processos e de estarmos juntos…
Mas hoje, …desculpem não consigo, e escrevo estas palavras ansiosas ancoradas numa dualidade entre passar-vos uma energia positiva impostora ou deixar-vos saber o que me vai na alma…muitos de vós sabem como sou aparentemente descomplicada, criativa e com uma personalidade que gosta mais de alavancar do que de refrear…que me reinvento muitas vezes, que tenho sempre pelo menos um sorriso e um abraço para partilhar… e que como o outro sou “irritantemente”positiva…
Mas por ora, e ainda que muitos assumam este período conturbado para se reinventarem, para criarem, para encontrar estratégias para continuar…não consigo escrever-vos sem assumir vazio e incerteza…se calhar como muitos de vós…
Não acredito em mantras mundiais de vai ficar tudo bem,…faço-os pelos meus filhos e por respeito a todos os que precisam de algo em que acreditar, para que continuem firmes no presente rumo a um amanhã que ninguém consegue dizer como será…mas que se prospectiva muito mais cinzento do que o ontem…
Sei que como nunca há gente e gentes dentro de casa, há cheiro a comida boa e que o canto dos pássaros se sobrepõe ao ruído dos carros e que as borboletas de várias cores voltaram ao meu jardim… e que há movimentos fraternos e que vamos ficar ligados… mas não, não vamos ficar todos bem…
Não vamos nada ficar todos bem…bem sei que somos egoístas e que nos queixamos no conforto do lar a ver a Casa de Papel ou a pintar arco-íris fofinhos com os nossos filhos de lareira acesa e frigorífico cheio…na verdade há os que não têm casa para se isolarem, os que fogem da guerra, continuam e continuarão a fugir da guerra e do papão, os que continuam a sofrer violência doméstica, os que estão sozinhos, isolados e aterrorizados…e que não aparecem por ora nas notícias, mas continuam a existir, e desculpem o egoísmo, mas nós os do frigorifico cheio, não vamos nada ficar bem…vai haver instabilidade social, vai haver desemprego transversal a várias áreas, vai haver medo de nos abraçarmos de novo, de estarmos juntos, de criar juntos…quando queremos como nunca abraçar os nossos…e os dos outros.
Nos últimos tempos ( ainda que há mais de 25 dias, não consiga escrever uma linha) estava a dedicar- me à investigação em torno da mediação cultural e do impacto da artes na educação, na cidadania e na comunidade…é nisto em que acredito e é este o meu trabalho…criar laços de proximidade entre as pessoas por intermédio da cultura e das artes, e consequentemente potenciar atitudes cívicas.
E se desafios se colocavam, são eles muito maiores agora, mas repito eu o meu próprio mantra, que vos convido a partilhar: “nada faz sentido sem as pessoas”…e não queremos zoom e encontros virtuais…queremos olhar nos olhos, queremos afetos e corpo e cheiro, e calor e pele…” nada faz sentido sem as pessoas, “nada faz sentido sem as pessoas” …quem sabe amanhã consigamos eu e vós…(re)inventar a esperança.
Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990