Opinião

Literatura | José Eduardo Agualusa (2020), Os Vivos e os Outros OU a ilha real da ficção

8 nov 2020 20:00

José Eduardo Agualusa nasceu em Angola, em 1960; estudou agronomia e silvicultura; viveu pelo mundo (Lisboa, Luanda, Rio de Janeiro, Berlim); escreveu romances, contos (para adultos e para crianças, seja lá essa distinção o que for…) e crónicas; tem sido premiado pela sua obra literária em Portugal e reconhecido internacionalmente em vários prémios

Com a publicação de Os Vivos e os Outros, em abril de 2020, a Quetzal junta ao braçado de obras de Agualusa, um precioso e enigmático romance, alegoria da Criação, passado em 7 dias na Ilha de Moçambique.

O leitor ideal será, provavelmente, aquele informado nas ‘lides literárias’, conhecedor dos encontros de escritores dos países de língua portuguesa (corresponda essa locução ao que corresponder…), das relações/conflitos iminentes entre literatos, amante do imaginário africano e das envolvências que cercam e tornam o Outro atraente e revelador de algo inédito/desconhecido para o Eu.

Desde o primeiro parágrafo (“O MAR CONTINUA PENDURADO NA JANELA da sala, como um quadro um pouco torto, mas já não é o mesmo que Daniel Benchimol encontrou ao chegar à ilha, três anos antes.”

Opus cit, p. 13) que a alternância /mistura/entrosamento/urdidura/fusão da ficção/literatura com o real vai ser a teia na qual tudo se enleia: a intriga, as personagens, os lugares (“Depois de os conhecermos intimamente, os lugares passam a ser outros.”, idem), o real, a geografia, os axiomas, o real, os leitores.

Para isso contribuem os excertos de citações de escritores que podiam estar nesse Encontro de Escritores na Ilha de Moçambique (e alguns estão… embora os excertos possam corresponder a obras publicadas depois do evento literário…) e são chaves de leitura para os acontecimentos narrados nestas 7 partes correspondentes aos 7 dias em que o mundo – como todos o conheciam – mudou.

Dum momento para o outro, a Ilha fica sem fornecimento de eletricidade e isolada do continente, e – sem rede – vão acontecendo as coisas mais extraordinárias, sujeitas ao descrédito de algumas personagens/escritores, acantonados numa lógica cartesiana; e à aceitação da inevitável sabedoria do mistério de tudo, para as personagens/escritores que acreditam estar a assistir à apoteose da transformação da ficção no real.

É nessa arte da mistura – “A realidade é isso, é o que acontece à ficção quando acreditamos nela!” (p. 180) – que a magia da escrita de Agualusa, mestre na revelação de imaginários e nos pormenores capazes de ‘desfamiliarizar’ a boa consciência ocidental e atrofiada do leitor, surge na sua dimensão luminosa e rasga os cinzentos mais obscuros dos medos, receios, angústias de todos: sejam eles personagens ficcionadas ou títeres representativos de pessoas em fuga ao seu passado literário.

O final do 7.º dia, pode ser um final em aberto, mas o mesmo (e circular) Daniel do 1.º dia, acabou de ler um Caderno onde o seu futuro aparece esquadrinhado, e toma uma decisão: “Daniel fecha o caderno e regressa ao presente. Vai até ao pátio (…) / (…) Rega o caderno com o combustível e lança-lhe um fósforo aceso. Senta-se na laje, com a tina aos pés, assistindo ao rápido incêndio da sua vida. (…) / Daniel respira fundo. –O que sou eu? – O que achas tu que és? – Uma invenção… – E não somos todos? (…)” (pp. 244-246).

Sobre a Invenção deste romance, é importante ler os agradecimentos, notas e uma advertência de Agualusa, nas pp. 251 e 252: mostram ao leitor-cúmplice os bastidores da ilha real da ficção.

Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990