Opinião
Meio copo de luar
A melhor coisa que as palavras têm é que podem ser lidas de muitos modos. Um diz outro entende e nem sempre o que é dito se aproxima do que é escutado
Vamos lá sair para beber um copo com os amigos. Um pouco mais tarde na noite. A lua é confidente e dilui a timidez como convém. Tilintam-se copos e fingimo-nos alegres, por vezes felizes. Fala-se de afazeres, projetos e conquistas – de desilusões nunca, essas ficarão lá mais para o fim da noite, quase madrugada, quando os corpos amolecidos se entornam nas cadeiras.
Trocam-se banalidades, lugares-comuns, graçolas e olhares também. Por vezes silêncios deste ou daquela, fingimos não reparar, alguma coisa se disse que lhes tocou a fímbria da intimidade e melhor será retomar o trilho da conversa no exato momento que antecedeu a amargura cuspida. O copo vai-se esvaziando aos poucos e as línguas soltam-se sem pudor. Recordam-se momentos, aventuras e desventuras partilhadas num dia anterior a todos os outros, contornos difusos de histórias antigas que se vão colorindo alegremente com pormenores que nunca aconteceram, mas que gostaríamos que assim tivessem sido.
E venha mais uma rodada para afogar a temperança e confirmar a razão da nostalgia, a nossa, a dos outros. Sussurram-se sugestões a quem está vizinho, fantasias do modo como entendemos factos passados, ocorrências, atitudes, e de momentos a vir também, venham ou não a acontecer. É um jogo de palavras-cruzadas, buscam-se hipóteses de concordância e mais logo se verá se ambos estavam a pensar a mesma coisa, mas sobretudo se pretendem um final em comum.
A melhor coisa que as palavras têm é que podem ser lidas de muitos modos. Um diz outro entende e nem sempre o que é dito se aproxima do que é escutado. O tom de voz, sim, essa é língua universal, onde delicodoces palavras se podem arremessar como setas embebidas em veneno, bem como dizeres sem pudor são saboreados como néctares divinos e assim, no beber comum, se faz sólida a relação antes líquida. Olha-se a lua filtrada pelo vidro do copo, deformada sim, mas com um brilho ampliado pela lágrima que escorre.
Um copo meio de cheio ou um copo meio de vazio? Impõe-se a questão que agora parece estar o copo a transbordar de luar, sobra luz onde antes havia líquido. Sabido é que um copo olhado como meio de vazio parecerá meio de cheio se lhe vazarmos o conteúdo para um vaso mais pequeno. Não se muda a realidade, mas sempre se pode mudar a perspetiva.
Como canta o Sérgio “bebe-se as certezas num copo de vinho” e “apagam-se dúvidas num mar de cerveja”. Por ora, resta-nos brindar que a amizade é alicerce da relação e com ela conseguirmos estar de bem e a bem com a circunstância.