Opinião
Música | Dias Perfeitos
A personagem principal leva uma vida simples e ouve somente cassetes de Lou Reed, The Animals, Patti Smith, Kinks, Van Morrison, Rolling Stones ou Nina Simone
Já lá vai o tempo em que via os filmes em estreia e até em antestreia, como aquela sessão épica de João César Monteiro a apresentar o seu filme Branca de Neve nos Cinemas Monumental, em Lisboa.
Nessa altura, em que Lisboa exibia cinema esquina sim esquina não, não só se via tudo o que estreava como se falava muito do que se via em sítios bem alfacinhas como o Café Estádio, Restaurante Palmeira, Cervejaria Nova América ou o Bar Artis. Eram os Vavás* da minha geração.
Vem esta conversa a propósito do filme Dias Perfeitos de Wim Wenders, estreado em 2023, mas que só agora tive oportunidade de ver na plataforma Filmin. As conversas que não dariam um filme como este? Agora, faz-se um post no Facebook a ver se pega, meia dúzia de likes e a coisa morre logo por ali. Sem azedume e controvérsia, não há tração, dizem-me.
A personagem principal, Hirayama, leva uma vida simples a limpar casas de banho públicas em Tóquio, ouve somente cassetes de Lou Reed, The Animals, Patti Smith, Kinks, Van Morrison, Rolling Stones ou Nina Simone, não usa smartphone, não sabe o que é o Spotify, não tem televisão e lê muitos livros. Sabe-se que mudou de vida, optando pela simplicidade do dia-a-dia tentando ser feliz com um raio de sol, um acenar de uma criança, um banho público, um café pela manhã, um passeio de bicicleta, uma bebida gelada ou a cuidar de plantas.
Ao contrário da primeira parte deste texto, Dias Perfeitos não me parece um filme que apele à nostalgia, é antes de mais um refúgio naquilo que nos pode manter à tona. Não sei se Hirayama é realmente feliz com a vida que tem, desconfio é que era tremendamente infeliz com a vida que tinha. O dinheiro não traz felicidade? Algum amor de perdição? Uma família destroçada? Alcoolismo? Algo se terá passado com aquele homem que agora consegue encontrar alguma felicidade num pequeno gesto ou num poema de Lou Reed. E como numa canção dos Velvet Underground, o difícil é tornar o simples em algo muito belo. E Wim Wenders também conseguiu fazê-lo, com a ajuda fundamental da singular cultura japonesa.
* (Referência ao café Vavá na Avenida de Roma, em Lisboa, que albergou muitas tertúlias cinéfilas entre os anos 60 e 80)