Opinião
Música | “Já tinha uma coisa combinada”
Num momento único da nossa História, é nos pedido um esforço para salvar a Humanidade
Vivemos numa época em que nos é pedido para fazermos parte da solução para salvar o mundo – que é levar a vacina – e mesmo quem vai, já torce o nariz porque metem-se as férias na segunda dose e, como todos sabemos, são muito mais importantes.
Depois de um inverno a dizer que “o raio da vacina nunca mais vem!”, agora parece que não dá jeito.
Era só para salvar o mundo, mas suas excelências estão ocupadas e mandam dizer que não podem. A rapidez com que se pensa que a Humanidade já nos deve alguma coisa, é impressionante.
Um pouco de gratidão a quem bate recordes nessa corrida de fundo que é imunizar, vamos lá. Se até nisto somos assim, imaginem nesse ato – saudoso ato – de ir ao cinema, ao teatro, a um concerto.
O “já ter uma coisa combinada” sempre foi o argumento principal para não se ir a lado nenhum.
Quando a Alemanha nazi baniu muitos dos seus melhores músicos, e acabou por se ver caída no mais absoluto vazio, o compositor, Karlheinz Stockhausen sentiu a necessidade de “saciar a fome de valores artísticos, realizando uma nova fórmula musical europeia, uma fórmula ligada à revolução das nossas consciências”, afirmou.
Ninguém sabe muito bem o que acontecerá no fim desta pandemia.
Paulo “Legendary Tigerman” Furtado, disse na semana passada numa conferência no Porto (em formato híbrido: online e presencial) que não compôs absolutamente nada durante a pandemia – no que ao seu rock'n'roll diz respeito - e se dedicou a outras bricolages, nomeadamente a atividades através de bandas sonoras. Interessa aqui refletir: o que virá depois?
Será que irão surgir novas fórmulas musicais ainda mais revolucionárias e a corrida aos hábitos culturais subirá vertiginosamente? Até pode ser no início que sim. Mas será que o consumidor continuará para aí virado ou irá depois ostensivamente ignorar, quanto mais não seja, porque “já tinha uma coisa combinada” e não vai dar?
Resumindo: num momento único da nossa História, é nos pedido um esforço para salvar a Humanidade. O cidadão comum responde: “é pá, até ia de boa mente, mas já tinha uma coisa combinada”.
Atribui-se a Kafka a frase: “hoje a Alemanha declarou guerra à Rússia. À tarde fui nadar”.
Esta falta de empatia, pelo que seja, é preocupante. No fim disto tudo, provavelmente, haverá uma euforia inicial, e depois o abstencionismo cultural voltará. Ou como já diziam os Deolinda, na sua canção, Movimento Perpétuo Associativo, “vão sem mim que eu vou lá ter”.
Mais uma oportunidade perdida? Nada disso. Depois sempre nos podemos dedicar ao velho queixume. Afinal sempre parece que vai correr tudo bem.
Ninguém nos passa a perna, não é? São muitos anos a virar frangos.
Mas não desses. Churrascadas, sim, deslocações nem tanto.
Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990