Opinião
Nós vs. Natureza
Ao contrário dos animais irracionais, o nosso raciocínio faz-nos escolher líderes presunçosos, sedentos de poder individual, relutantes ao diálogo
Sento-me em frente à televisão, ao domingo, e vejo o programa sobre a Natureza de uma das nossas estações de televisão. É o pequeno almoço de café com leite e uma torrada grande saboreados com lentidão, e a aprendizagem de mistérios e acontecimentos do mundo animal e das forças da natureza, muitas vezes violentos, mas sempre coerentes.
A destruição provocada pelas intempéries contém sempre, em si mesma, um recomeço, um reinício de ciclo, uma nova oportunidade. As mortes dos seres vivos acontecem porque outros precisam de alimento, ou porque apenas desse modo outros seres vivos poderão nascer. Este ritual domingueiro leva-me para um mundo articulado, coerente, concertado, onde o todo é sempre maior do que a parte, onde a perfeita manutenção de todo um sistema, mais do que a sua mera sobrevivência, é o principal objectivo.
Os animais vivem em sociedade, organizados em grupos cujos elementos têm funções a cumprir e são orientados por um líder escolhido pela sua capacidade de manter o grupo seguro, de acordo com as suas necessidades; se por algum motivo o líder falha nessa missão, perde a função. A Natureza tende sempre para o equilíbrio e para a harmonização de to dos os seus elementos; tende para o Bem.
Terminado o programa, esta outra realidade do planeta que somos nós, os humanos, começa a entrar de forma avassaladora por todos os canais de notícias. É a nossa realidade mais feia, erradamente dita “primitiva”, porque apenas movida pelo “ter mais, e mais poder, do que o outro”, e pela dificuldade em aceitar que o outro não tem de ser igual a nós para ser tão bom, ou muito melhor, do que somos.
É a realidade da guerra, tão avassaladora que já estamos quase habituados; que já nem ligamos muito; que já conseguimos ver enquanto beberricamos um gin tónico e roemos umas batatas fritas; que já é tanto mais do mesmo que a preferimos trocar por uma série qualquer. Não conseguimos olhar, repetidamente, para o pior de nós, humanos, e explicamos individualmente essa recusa dizendo que estamos indignados e tristes, mas que nos faz mal o permanente desfile de horrores; que não é o povo, são os governos; que não são os soldados, são os senhores da guerra. E pronto. Como se não fossemos nós a escolher, mesmo que infimamente.
Ao contrário dos animais irracionais, o nosso raciocínio faz-nos escolher líderes presunçosos, sedentos de poder individual, relutantes ao diálogo, incapazes de cedência e surdos à vontade e opinião de quem governam; faz-nos aguentar as más decisões e estados de alma dos piores governantes, e permite que se continue a matar por ideias, por crenças, ou pela supremacia.
No reino do raciocínio, a destruição nunca contém em si mesma um recomeço, um reinício de ciclo, ou uma nova oportunidade, apenas destrói; o comando dos líderes em guerra não visa um todo articulado, coerente e concertado, nem mantém o grupo seguro; não se tende sempre para o equilíbrio nem para a harmonização de todos os elementos que o compõem, e só às vezes se tende para o Bem.
Há um vídeo mostrando centenas de pessoas, ombro a ombro, num enorme esforço concertado, empurrando a lama de uma rua de Valência; não se vê qualquer líder à frente.