Opinião
O pato
A terceira ideia é lateral e é sobre a forma como comunicamos a informação fiável num mundo onde não temos instrumentos fiáveis para o fazer.
Sem menosprezar o perigo real que representa o surto do vírus Corona, também eu gostava de olhar o fenómeno aqui, mas de o olhar como um gigantesco espectáculo que se desenrola há semanas à nossa frente e continuará seguramente a desenrolar ainda.
O espaço que tenho é muito pouco, mas vou tentar.
Num artigo do New York Times de 15-16 de fevereiro, Max Fisher contava uma história como introdução a um artigo onde concluía que sendo os efeitos do vírus uma coisa e aquilo que se percepciona outra muito diferente, melhor seria interiorizarmos bem a ideia de que tudo, ou quase tudo, se passava na nossa cabeça.
Isto é, e eu concordo com ele, uma coisa é o perigo e outra a forma como reagimos irracionalmente ao perigo que imaginamos. É uma primeira ideia dramática.
A segunda ideia, do Público de 1 de Março, por exemplo, é a de que este movimento global de resposta instintiva ao vírus radica num problema de informação. Ou seja, reage-se de modo pouco racional porque nos encontramos em situação de desinformação, donde, informando resolver-se-á, se não a totalidade, boa parte do problema.
O facto de estar em contradição com a primeira ideia só a torna mais interessante em termos espectaculares.
A terceira ideia é lateral e é sobre a forma como comunicamos a informação fiável num mundo onde não temos instrumentos fiáveis para o fazer.
Um exemplo só, neste caso do Expresso de dia 29 de Fevereiro, onde uma entrevista muito inteligente e muito ponderada da directora-geral da Saúde tinha como título “Graça Freitas admite um milhão de infectados em Portugal”. Puff!
Uma quarta ideia, central aqui, é a de que perdida a capacidade de compreensão daquilo que nos é revelado fazemos o que sempre fizemos, refugiamo-nos numa história, numa narrativa mais ou menos coerente que nos explica o que é para nós inexplicável, um mito, diz Lévi-Strauss. E agimos em conformidade.
Uma amiga minha contava-me há dias que a neta, com medo que o pai fosse mordido, insistia que tinha visto o vírus na televisão, que era tipo bola, tinha pelos e um bico de pato.
Não era portanto impossível que se pudesse matar à paulada, digo eu.