Opinião

Pela fresca, no Soutocico, fez-se arte

8 ago 2024 16:26

Todos os anos o ritual se repete: largo apinhado de gentes, de gaiatos a antigos, de nascidos e criados na terra a forasteiros

No último fim-de-semana decorreram as Festas do Senhor dos Aflitos no Soutocico. Domingo, pela fresca, a Filarmónica Senhor dos Aflitos do Soutocico, subiu ao palco e presenteou o largo fronteiro à capela com a sua Arte. Este largo tem nome próprio, Afonso Diniz Vieira, assim chamado em homenagem ao maestro fundador desta Filarmónica que, em 5 de Agosto de 1946 (há setenta e oito anos, caramba!) fez estrear a jóia da coroa daquela localidade.

Todos os anos o ritual se repete: largo apinhado de gentes, de gaiatos a antigos, de nascidos e criados na terra a forasteiros, de residentes a outros que a vida levou para mais longe, para escutar a sua Filarmónica. Momento solene e simultaneamente descontraído, erudito e popular, universal sem dúvida.

Sou assumidamente duro de ouvido e de música só sei dizer se gosto ou não gosto, isto é, eclético no que ouço e reticente no que me agrada, porque a música que me agrada é aquela que me faz imaginar cenários e narrativas, que me reporta para outro local que não aquele. Admirador confesso de quem sabe interpretar uma partitura e invejoso do artifício mágico de quem sabe descobrir sonoridades a partir de um instrumento musical.

Por via disto, e cada vez que assisto aos concertos daquela Filarmónica, sinto-me entre o basbaque e o maravilhado a olhar para um palco onde às indicações precisas de uma batuta se unificam miúdos e graúdos, profissionais de áreas distintas, amadores e profissionais. 

Este ano estive ao lado de um meu convidado, Maestro, e que me foi ajudando a entender melhor o que estava a escutar, exigente consigo e crítico natural do desempenho dos seus pares. No final, alguns dos intérpretes trocaram com ele abraços e comentários. Havia felicidade e comprometimento nos elogios. Tranquilizou-me. Afinal tinha razões para eu ter gostado tanto.

Mas do que queria mesmo falar não era da interpretação, era do gesto cultural que ali teve lugar. Um senhor que é mesmo muito importante para o pensamento do teatro, Bertolt Brecht, dizia que o teatro tinha que ser popular e universal. Popular, porquanto a linguagem poética deve ser acessível a todos; e universal, expondo temas que transversalmente digam respeito a todos. Creio que o mesmo se poderá dizer de todas as expressões artísticas.

Sem dúvida que os prolongados aplausos que se fizeram escutar não eram apenas pelo orgulho de ser coisa da sua terra, antes porque a mestria do conjunto fez com que todos entendêssemos bem o que ouvíamos e dizia respeito à evocação das memórias de todos nós.

Quando terminou e começámos a dispersar, os encontros, os cumprimentos e os abraços deixaram de ser meras formalidades de circunstância. Passaram a ter um sentido mais intenso de termos estado todos a partilhar um momento em que a todos disse respeito.

Fez-se Arte, maiúscula e comprometida com o rigor pela fresca, no Soutocico.