Opinião
Recomeçar
Cair e rasgar a pele das convicções ou das firmezas é uma condição do ser humano
Miguel Torga, no seu Diário XII, presenteia-nos com um eloquente poema intitulado Sísifo, que neste início de novo ano 2022 não hesito em transcrever na íntegra: Recomeça... / Se puderes / Sem angústia / E sem pressa. / E os passos que deres, / Nesse caminho duro / Do futuro / Dá-os em liberdade. / Enquanto não alcances / Não descanses. / De nenhum fruto queiras só metade. / E, nunca saciado, / Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar. / Sempre a sonhar e vendo / O logro da aventura. / És homem, não te esqueças! / Só é tua a loucura / Onde, com lucidez, te reconheças...
Apesar das imprecisões e das dúvidas que provêm de um recomeço, a vida é ambígua e baça, um caminho cujo desfecho se desconhece.
E há a incerteza das privações, a gramática das contrariedades e o rebuliço dos conflitos que por vezes nos constrangem e tolhem os sentidos, perante a perspectiva dos abalos (im)permanentes.
Cair e rasgar a pele das convicções ou das firmezas é uma condição do ser humano. A existência é um instante em permanente transformação e solitude.
É precisamente quando estamos face a esta consciência da solidão, perante o mundo e os outros que nos rodeiam, que assumimos a genuína individualidade, sem filtros ou subterfúgios, sem a presença dos vícios ou dos rodeios.
A solitude entreabre as janelas do horizonte, esse sentido ambivalente da profundidade desconhecida que há na esperança e no infinito que nos transcende.
E admitir a possibilidade de mudanças é relevar a confiança, da viragem e da deslocação do que em nós se constrange e habita, como uma “voz que nos trai” - verso extraído de um poema de Paulo José Miranda - como algo que dá sentido a uma espera.
A vulnerabilidade é um evento indissociável da sobrevivência que nos redime e nos levanta.
Os momentos mais complexos e árduos contêm igualmente a graça e o perfume da reedificação. Ou o restabelecimento das virtudes da maturidade na insistência.
As feridas que se alojam na interioridade, longe da palavra repetida e banal, são o mote para a ressignificação da resistência e da coragem.
Também nos recomeços há lugar para o perdão daquilo que jamais esqueceremos e que experimentámos como angústia e revolta.
O tempo é força e espaço. Lugar de expressão de um caminho que nos leva ao sonho dinâmico e projectivo, reduto da autenticidade que transportamos na alma.
Recorrendo ainda à personagem mitológica que deu título ao poema de Torga, Albert Camus a ele se reportou num ensaio filosófico escrito em 1941, intitulado O Mito de Sísifo.
Para o filósofo franco-argelino, o homem vive a existência em busca do seu sentido exclusivo, muito embora encontre um mundo desconexo e ininteligível.
Não é o mundo que é absurdo, nem o pensamento humano incoerente: o absurdo surge quando os humanos precisam de entender a razão para as irracionalidades do mundo.
Recomeçar é sinónimo de continuar, repetir, reproduzir, retomar, voltar, mas também, de restaurar, renovar, retravar, reencetar, reiniciar.
E isso é bem mais do que um mito: é a representação finita da eternidade, na forma cíclica e consciente a que todos estamos sujeitos no quotidiano a que pertencemos.