Opinião
Saúde: direito ou questão de fé
No país de que estou a falar, existe medicina com qualidade que alguns podem pagar
Vivi vários anos num país em que, apesar dos esforços dos profissionais, o acesso a cuidados de saúde não era garantido. A primeira vez que fiz uma viagem de carro longa, só me ocorreu perguntar o que acontece em caso de acidente quando estava a arrancar para um percurso de mais de mil quilómetros.
“Se isso acontecer, confia”, ouvi. É isso. Confiar que alguém quer, confiar que alguém pode ajudar. Nunca tive que ser socorrida, mas estive envolvida num acidente longe do espaço urbano de que resultou um ferido. Quando aconteceu, não havia a quem pedir ajuda. O que quer que fosse encontrar quando abrisse a porta do carro, teria que resolver. Não interessavam os meus 25 anos ou a tentação de congelar de medo.
No país de que estou a falar, existe medicina com qualidade que alguns podem pagar. Há ambulâncias e bons médicos. Mas a saúde privada não substitui a pública. Para a primeira, onde não há lucro não há investimento. Reze-se, pois, para que as doenças sejam frequentes, lucrativas e urbanas. Reze-se para que não existam inimagináveis, como uma pandemia, onde é necessário fazer muito mais do que o que foi contratado. No momento em que o vírus parece dar-nos folga, o SNS, que respondeu no pior momento, revela sinais de desgaste. A resposta para alguns está nas parcerias com os privados. Oiço críticas a quem não vai nessa retórica e ouvi a esquerda ser acusada de recusar esse caminho por ideologia, como se ter princípios fosse um ato de má fé. O flirt com os privados sustenta-se numa razão técnica alegadamente neutra, mas nenhuma razão o é e qualquer validação científica assenta em critérios que alguém definiu. Dito de outro modo, a validação depende de onde queremos chegar e durante quanto tempo. Um paracetamol alivia a dor, mas não cura a origem. É preciso saber o objetivo para avaliar o tratamento.
Se tiver problemas com a minha habitação e não puder comprar casa, a solução imediata pode ser arrendar, mas ficarei dependente das oscilações do mercado e da manutenção que o/a proprietário/a esteja disposto a fazer. Por mais blindado que seja o contrato, resta-me, como no acidente, confiar. É a solução para muitos/as de nós, porque somos precários, porque os salários são baixos, porque não temos garantias. O resultado é passarmos o tempo a pagar sem investir. Não fazemos melhorias desejadas, não deixamos um legado a quem fica e frequentemente pagamos mais.
Quando oiço apregoar as parcerias com privados para o SNS, é nisto que penso.
Queremos mesmo um arrendamento coletivo de um pilar central da constituição a que historicamente tantas pessoas se dedicaram? Se apetecem soluções rápidas, raramente são saudáveis.
Imagino os privados a salivarem com o lucro em vista e a sedução de quem tem poder para decidir. Conheço a técnica de fazer mal para não ter que fazer, mas recuso dar folga ao Estado e deixar a saúde em mãos alheias. Não quero depender de privados para aceder a um direito essencial, o que é diferente de aceitar o que há.
Exigir ao SNS dignidade para quem tem trabalhado até à exaustão e para cada um/a de nós é respeitar quem lutou para que acesso à saúde fosse mais do que um direito no papel. Um direito historicamente conquistado não é mercadoria.