Opinião
Se nada mudar a bem...
Estamos, mais uma vez, diante de uma crise, agora tudo indica de dimensões bíblicas, e, se nada for feito, o fosso de desigualdades será maior do que alguma vez conhecemos.
Esta pandemia veio despertar, espero, a Humanidade e a nossa humanidade para a sua enorme fragilidade.
Ao ameaçar todos, por igual, teve a virtuosidade de, por uma vez, fazer as pessoas deixarem de olhar para as calamidades como realidades alheias.
Estas, apesar de ocorrerem mesmo ao nosso lado na Síria, na Líbia ou no Mediterrâneo, passam, fugazmente, nos ecrãs da televisão que o zapping transforma em meros instantâneos.
De outras realidades distantes, como por exemplo o facto (um entre tantos) de no Iemen uma criança morrer de desnutrição, a cada 10 minutos, as cadeias de televisão não querem ou fingem não saber.
A culpa, no entanto, não é das televisões, mas sim da nossa fraca massa crítica, enquanto cidadãos consumidores, de um bem essencial que é a informação.
Há uns anos atrás, um conhecido gestor de topo, de um dos maiores bancos nacionais, afirmou, sem pudor, que os portugueses, de entre eles os que ganhavam o salário mínimo, aguentariam a austeridade.
Afirmação jocosa que o próprio, percebendo o impacto mediático negativo que teve, veio, mais tarde, reconhecer como infeliz.
Nessa “mea culpa”, contou que havia sido abordado, junto à escola da neta, por uma senhora que o interpelou para a miséria que vivia e que era visível pelo seu aspeto.
Muito bonita a assunção pública do arrependimento, mas o que é certo é que, mesmo carregando com a sua “pesada mágoa”, esse gestor, sumptuosamente pago, continuou a auferir cerca de meio milhão de euros de remuneração por ano, além de comissões, enquanto o povo aguentou, claro.
A questão que nos deve levar a refletir é a de saber o preço que os mais desfavorecidos e mais mal remunerados tiveram de pagar para suportar essa sua “sorte”.
Podemos, no limite, questionar sobre que direito superior tem a neta desse gestor a uma vida faustosa vivida “paredes meias” com outras crianças que a única refeição decente que têm por dia é aquela que tomam na escola.
Estamos, mais uma vez, diante de uma crise, agora tudo indica de dimensões bíblicas, e, se nada for feito, o fosso de desigualdades será maior do que alguma vez conhecemos.
Para começar, é preciso acabar, de uma vez por todas, com a infâmia dos salários que mal dão para comer, dentro da mesma realidade económica, onde outros ganham esse valor multiplicado por dezenas ou até centenas de vezes.
Nada me choca que o presidente do Conselho de Administração de uma grande empresa, como a EDP, ganhe duzentos mil euros, por mês, desde que pague noventa por cento de imposto.
Os “senhores do dinheiro” dirão que é um abuso e nós devemos perguntar a que abuso se referem, o do imposto ser elevado ou o abuso de, mesmo assim, esse gestor ganhar vinte mil euros por mês.
A questão da distribuição da riqueza e, por conseguinte, da pobreza, manifestou-se, de forma pungente, na crise anterior e temo que venha a revelar-se ainda mais, flagrantemente, desta vez.
Algo tem de ser feito, pois é ridículo autodenominarmo-nos como “mundo civilizado” onde uns passam fome e outros tomam “Kompensan”.
Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990