Opinião
Também somos muito bons na arte do “reclamanço”
Votar é sem dúvida o exercício maior da prática dessa cidadania e negá-lo é negar a construção, ou a tentativa, de criar uma sociedade mais justa e mais equilibrada que vá ao encontro dos nossos desejos.
Cerca de 51% dos portugueses com capacidade eleitoral recusaram-se nas últimas eleições legislativas a exercer um dos mais importantes deveres cívicos e pelo qual muitos lutaram e morreram.
Haverá sempre uma enorme dívida de gratidão a todos esses Homens e Mulheres que morreram por uma causa maior com a esperança conseguida de uma “madrugada” que se “esperava limpa e inteira” para que hoje se possa dizer e escrever o que se pensa e mesmo assim, passados tantos anos, ainda somos devedores perante aqueles que conseguiram a tão precisa e preciosa liberdade.
O que fazemos do legado que nos foi deixado?
O estado a que isto chegou e o estado para onde isto vai também é resultado das nossas escolhas, e quando escolhemos ficar em casa ou ir à praia no lugar de ir votar, exigir o que quer que seja não dignifica a cidadania.
O resultado de não votar é pôr nas mãos dos outros uma decisão que é só nossa e ao deixarmos que os outros decidam por nós é rasgar o papel de actor principal que temos enquanto cidadãos na construção de uma qualquer sociedade. O contrato social é rasgado e deitado à lareira. Nunca poderemos saber se isto seria diferente e melhor.
O desenho parlamentar de hoje, que a todos diz respeito e a todos afecta, é o resultado de uma escolha de uma só parte dos portugueses.
A outra, aquela que podia fazer a diferença, prefere não dizer nada e permanecer no silêncio enquanto pratica exaustivamente a arte do “reclamanço” à mesa do café com os amigos a discutir sobre os impostos a pagar, o aumento dos combustíveis, ou a consulta de oftalmologia que está marcada para Novembro de 2021.
Abdicando cada um nós do papel enquanto cidadãos e da sua extrema importância, eles vão continuar a mandar nisto tudo, a fazer o que quiserem disto tudo e a “vender” todos os dias sonhos. Mas nós reclamamos e bebemos mais uma mini. Se acabarem as minis, aí é que ficamos mesmo chateados.
Votar é sem dúvida o exercício maior da prática dessa cidadania e negá-lo é negar a construção, ou a tentativa, de criar uma sociedade mais justa e mais equilibrada que vá ao encontro dos nossos desejos.
É certo que a lei portuguesa não obriga ao voto, o mesmo é dizer que há liberdade de não votar, ou seja, de não participar na democracia. Com cerca de mais de metade dos portugueses a ficarem em casa se fizer frio ou a ir à praia se estiver um belo dia de sol no dia de eleições, corremos o risco de continuar a reclamar, porque nisso somos realmente também muito bons.
Para a construção de um país para o qual todos somos chamados a participar, a abstenção daqueles que só reclamam é mais um cancro a vencer no meio de tantos outros que por aí vão chegando, igualmente perigosos, vazios de conteúdo e de ideias, vazios de soluções mas cheios de ânsia de chegar ao poder “travestidos” de democratas que mandam calar alguns, que podem e devem opinar, e exigindo a esses o dever de se calarem se a opinião não agradar.
Se 51% dos portugueses não sabem o que querem, então terão que se aguentar com a escolha que os outros fizeram.
Agora, reclamem.