Opinião
Teorias fluviais
Ao invés de alicerçar a liderança regional num conjunto de estruturas humanizadas, bem poderia o poder eleito pensar em fórmulas de bem acolher outra fauna endógena e que, de forma gratuita, poderiam engrandecer a cidade e a região
Por meados do século passado, quando alguns familiares próximos viajavam para a escola num burro chamado Pigarço, abundavam as lampreias no vale do Lena. Herdei armadilhas e outras avançadas tecnologias que facilitavam a sua captura, mas nunca tive oportunidade de as colocar em ação.
Até hoje, a única fauna observável neste rio parece reduzir-se a microscópicas criaturas resistentes a todas as poluições. E até os infestantes lagostins deixaram mais recentemente de ser vistos.
Para manter o nostálgico vício da lampreia, obrigam-me hoje a viajar até ao – sempre estranho, sempre estrangeiro – distrito de Coimbra. Neste território bizarro, onde ainda se encontra com alguma facilidade a famosa “cozinha para doutores”, as águas do rio parecem continuar a relacionar-se com a costa, e algumas lampreias ainda deambulam pelo Mondego e seus afluentes.
Munido de 45 euros, obtidos com a venda de 15 quilos de cebola, avancei para Montemor onde me prometeram servir a ancestral iguaria. Bem sei que muitas outras coisas, como por exemplo o lavagante, se arranjam hoje a preços mais módicos, mas na verdade não sou eu quem escolhe, mas um conjunto de ancestrais que por esta altura do ano sempre me encaminham para o rio.
O bárbaro açude enxertado para os lados do matadouro barrou o caminho a estes simpáticos animais munidos de sete “ouvidos” (também conhecidos como “orifícios branquiais”, para os mais familiarizados com Lineu), impedindo que muitas famílias conheçam este tesouro ribeirinho.
Espero sinceramente que os projetos autárquicos associados ao desenvolvimento da natação no baixo Lis/Barosa, incluam a destruição desta barreira artificial, hoje inócua, e de crucial importância para as lampreias voltarem a alcançar as zonas mais recônditas do Lis e do Lena.
Numa urbe semi-grande hoje largamente promovida através de corridas, faixas pedonais, bicicletas, atividades desportivas e passadiços, interessaria também deixar correr, e reproduzir-se, o famoso ciclóstomo. Ao invés de alicerçar a liderança regional num conjunto de estruturas humanizadas, bem poderia o poder eleito pensar em fórmulas de bem acolher outra fauna endógena e que, de forma gratuita, poderiam engrandecer a cidade e a região.