Opinião
Uma narrativa pictográfica na Batalha
Em Jorge Estrela confluíam os caracteres de uma personalidade que deve ser lembrada e que a Leiria cabe continuar a revelar.
Dedicou-lhes um interesse desvelado e persistente, ao longo de décadas. Aos amigos e companheiros de tertúlia intelectual, referia com frequência a sua descoberta e a pesquisa que parecia não ter fim.
Carlota Simões, sua viúva, contou que já nos tempos do namoro, o Jorge a convidava para ir com ele à Batalha à procura dos grafitos espalhados densamente no exterior e interior do monumento.
O Jorge Estrela já não está entre nós, fará a 1 de Janeiro cinco anos. Mas os amigos, a Câmara da Batalha, o editor Carlos Fernandes congregaram esforços para nos dar a conhecer a obra inédita que deixara sobre a secretária: Os Grafitos Medievais do Mosteiro da Batalha (Leiria, produção Hora de Ler, 2019).
Conheci Jorge Estrela em 2008, quando preparava, a solicitação da Câmara Municipal de Alpiarça, uma exposição sobre José Relvas e a Casa dos Patudos a realizar na Assembleia da República.
Eu procurava um historiador de arte que me ajudasse a proceder a uma selecção das obras de pintura, escultura e artes decorativas da colecção Relvas para integrar a aludida exposição e um amigo comum, Nicolau Borges, apresentou-nos, marcando um encontro, em Lisboa, seguido de uma visita a Alpiarça.
Lembro-me bem de ambas as ocasiões. A primeira: a forma como me recebeu em sua casa, em Lisboa, e me orientou numa visita à sua extraordinária biblioteca, onde se reflectia a diversidade das suas áreas de estudo e a profundidade com que as abordava.
A segunda: o dia passado na Casa dos Patudos, na companhia de Nicolau e de Vítor Serrão, outro dos grandes amigos do Jorge, as observações críticas, as dúvidas sobre muitas das atribuições e datações apresentadas pela museografia da Casa, as descobertas no escritório de Relvas.
Na sequência dessa visita, Jorge Estrela aceitou fazer parte da pequena equipa que comissariou a exposição, escrevendo boa parte do catálogo, com prazos apertadíssimos.
Não voltaríamos, com perda para mim, a trabalhar em conjunto, mas segui as suas iniciativas na Casa Museu João Soares (onde, aliás, a convite seu fiz uma conferência sobre os militares e a política no século XX), na Gulbenkian e no CCB.
Em Jorge Estrela confluíam os caracteres de uma personalidade que deve ser lembrada e que a Leiria cabe continuar a revelar.
Ele foi bem o exemplo de um leiriense por origem familiar, homem do mundo, particularmente da Europa.
O seu cosmopolitismo não era apenas o resultado de uma riquíssima experiência profissional, em França, mas de uma visão informada do mundo e de uma curiosidade científica multidisciplinar, exigente e transbordante e uma percepção de excepcional acuidade dos processos criativos.
Das múltiplas deambulações deste perito de arte - um erudito como salientou Vítor Serrão - resultaram notas, estudos, inventários, textos que mereciam ser recolhidos e publicados.
Como fica demonstrado com a publicação destes Grafitos Medievais, a sua pesquisa é sempre desafiadora, as conclusões surpreendentes, o processo exemplar.