Viver

Aquela manhã em que o tango chegou a casa de Laura Santos

6 mai 2021 11:41

Aldeias do norte do distrito de Leiria recebem espectáculos intimistas em salas de estar, varandas e terraços, no contexto do projecto Palco em Casa

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A visita da SAMP a Cabeças, na fronteira de Figueiró dos Vinhos com Alvaiázere
Cláudio Garcia

Ao ar livre, entre vales e montes, ressoa o Libertango, de Astor Piazzolla. Os artistas são profissionais, os espectadores raramente têm acesso a cultura. Encontram-se através do projecto Palco em Casa, que está a percorrer, com música, dança, teatro, pintura e poesia, aldeias do distrito de Leiria, no Pinhal Interior Norte, onde ninguém esquece o grande incêndio de Pedrógão Grande em 2017.

É em contextos de máxima proximidade (salas de estar, varandas, terraços) que os espectáculos acontecem. Destinam-se aos mais velhos de aldeias isoladas. O caso de Laura Santos, que amanhã (7 de Maio) celebra 99 anos e reside em Cabeças, no limite dos concelhos de Figueiró dos Vinhos e Alvaiázere.

Quando a equipa da Sociedade Artística Musical dos Pousos (SAMP) chega, encontra-a junto da lareira, a enganar o frio. A coordenadora do Palco em Casa, Raquel Gomes, de guitarra ao peito, também se senta ao lume. E aproveita o momento para cantar com a anfitriã – “Ó Rosa, arrendonda a saia” – e conhecer o segredo de tamanha longevidade: “Todos os dias dois pãezitos e uma banana”.

Pelas dez e meia, a manhã assume contornos, muito provavelmente, inéditos. Lá fora, à porta da habitação, no pátio com vista sobre a encosta pintada de verde, longe de quase tudo e de quase todos, Laura Santos e o filho, mais quatro vizinhos e amigos, escutam atentamente as primeiras notas arrancadas do acordeão pelo músico Pedro Santos, que nos 35 minutos seguintes será acompanhado, a espaços, pela bailarina Inesa Markava – tanto ele como ela, participaram nas últimas semanas em Madrid, Barcelona e Santiago de Compostela, sempre com bilheteiras esgotadas, nos Concertos para Bebés da companhia Musicalmente.

Espanha é o circuito internacional a remunerar o investimento no estudo e na carreira, já o que se proporciona no Palco em Casa, além de “muito gratificante”, é “único”, admite Pedro Santos. “É a primeira vez que estas pessoas, a grande maioria, ouve estas obras e [as] vê dançadas desta forma. E quando é a primeira vez com pessoas como esta senhora que vai fazer 99 anos, é algo que transcende qualquer palco, por maior que seja”.

Para António Ferreira, a visita da SAMP transforma uma sexta-feira normal (30 de Abril) num dia inesquecível. “Andava a trabalhar no campo, a plantar tomates”, quando outra habitante de Cabeças telefonou a convidá-lo. “Uma alegria”, diz ao JORNAL DE LEIRIA, a oportunidade de deixar a horta, trocar de fato e instalar-se a ouvir o alinhamento dominado por tango, valsa e bolero.

“Há só uma obra de carácter popular, que é um vira, que a bailarina, a Inesa, me pediu”, explica Pedro Santos. “Mas eu por norma trago repertório que não é conhecido e tento trazer repertório o mais originalmente feito para o instrumento”.

O objectivo é surpreender, mostrar algo novo, a chamada música erudita, a que o público das aldeias mais dificilmente tem acesso ao vivo.

No fim, todos ganham. Incluindo, os artistas, que, tipicamente, asseguram três apresentações num dia a circular de destino em destino, por estradas secundárias engolidas pela Natureza.

“Eu guardo no coração estes momentos”, sublinha Inesa Markava. “É muito especial, cantar, dançar, para duas pessoas ou para uma pessoa”. O contentamento de quem assiste, diz a bailarina natural da Bielorrússia e radicada em Leiria, comprova-o “aquele brilho nos olhos e aquela atenção que dão ao longo do espectáculo”, mas, também a “vontade de oferecer uma fatia de bolo e um bocadinho de conversa”.

Laura Santos à conversa com a coordenadora do Palco em Casa, Raquel Gomes, e a bailarina Inesa Markava

Tempo de despedidas em Cabeças e Laura Santos, 98 anos a caminho dos 99, resume tudo: “Muito bonito”.

Até meados de Julho, estão previstos 24 concertos em 24 casas, todos gratuitos, nos concelhos de Pedrógão Grande, Figueiró dos Vinhos e Alvaiázere, mais 12 arruadas (Banda Filarmónica dos Pousos e Banda Filarmónica Pedroguense), um concerto final no Mercado de Santana, em Leiria, e a apresentação, no Teatro Miguel Franco, também em Leiria, e no mesmo dia, de um documentário sobre o Palco em Casa, da autoria do Casota Collective.

O projecto da SAMP – em que o espectador não paga, mas tem direito a bilhete – pretende garantir programação cultural junto da terceira idade e em territórios de baixa densidade populacional, de modo a lutar contra o abandono, a solidão e a exclusão.

Conta com apoio da Rede Cultura 2027 e parcerias com os Municípios de Leiria, Figueiró dos Vinhos e Pedrógão Grande, além do Politécnico de Leiria, através do CDRSP – Centro para o Desenvolvimento Rápido e Sustentável de Produto.