Sociedade
Atrasos, desvios e tarefas essenciais por executar. O que diz o Observatório Técnico Independente sobre o estado actual do Pinhal de Leiria
Três anos depois do incêndio, os peritos escolhidos pela Assembleia da República deixam recomendações com foco no planeamento, regeneração natural, reflorestação, erosão e controlo de espécies invasoras. E pedem uma nova energia na recuperação da Mata Nacional de Leiria
No Pinhal de Leiria, os peritos do Observatório Técnico Independente (OTI) encontraram lixos urbanos e industriais e património construído não recuperado.
A informação consta num estudo técnico enviado ontem à Assembleia da República, com o ponto de situação e recomendações, três anos depois do incêndio que atingiu 86% da Mata Nacional de Leiria.
Leia também: Peritos arrasam ICNF e recomendam criar nova entidade para gerir o Pinhal de Leiria, com as receitas da venda do material lenhoso proveniente do incêndio de 2017
Num documento muito crítico para a gestão pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), o OTI aponta “atrasos e desvios” na recuperação do Pinhal de Leiria e considera que há “tarefas essenciais ainda por executar”.
O processo parece ter-se atrasado no final do primeiro ano a seguir ao incêndio de 15 de Outubro de 2017.
No estudo, lê-se que “as acções implementadas pelo ICNF dizem respeito a uma pequena fatia de todo o território afectado pelos fogos e pelo furacão Leslie” e que é necessário intervir “em vastas áreas onde não existe ainda qualquer regeneração natural”.
Outra falha, a revisão do Plano de Gestão Florestal, que se reveste “da maior urgência”. Está por fazer. O actual é de 2010.
Os especialistas do Observatório Técnico Independente manifestam-se preocupados com o insuficiente controlo da erosão hídrica e eólica e com a protecção do cordão dunar litoral.
Alertam também para o insuficiente controlo de pragas e doenças e para o alastramento de espécies invasoras, nomeadamente, acácias.
O secretário de Estado das Florestas, João Catarino, diz que o processo de alienação da madeira com valor comercial proveniente do incêndio de 2017 está 99% concluído e já rendeu 16 milhões de euros, mas o OTI assinala que ainda há material lenhoso queimado por extrair.
Tempo de agir
“Estamos a chegar ao limiar entre o compasso de espera e o compasso de espera que já é exagerado”, afirma, sobre o Pinhal de Leiria, o presidente do Observatório Técnico Independente.
É preciso agir, afirma Francisco Rego ao JORNAL DE LEIRIA. “Ainda estamos a tempo, mas esse tempo tem de ser utilizado e tem de ter uma energia nova”.
O Estudo Técnico Sobre a Recuperação da Mata Nacional de Leiria Após os Incêndios de Outubro de 2017 foi concluído esta semana pelo Observatório Técnico Independente, um grupo constituído em 2018 justamente para análise, acompanhamento e avaliação dos incêndios florestais e rurais que ocorram em Portugal.
É composto por especialistas do âmbito da protecção civil, prevenção e combate aos incêndios florestais, ciências climáticas, ordenamento florestal e comunicações e análise de risco, com seis peritos designados pelo presidente da Assembleia da República depois de ouvidos os grupos parlamentares, dois peritos indicados pelo Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas e outros dois pelo Conselho Coordenador dos Institutos Politécnicos Portugueses.
No documento, reconhecem que as respostas imediatas por parte do Governo aos incêndios de Outubro de 2017 na Mata Nacional de Leiria foram céleres e devidamente orientadas.
“A análise da concretização das respostas revela, contudo, uma condução pouco orientada do processo por parte do ICNF”, apontam.
“O processo parece ter-se atrasado consideravelmente a partir deste período inicial (primeiro ano após os incêndios)” e “há reclamações do município da Marinha Grande, do Observatório do Pinhal do Rei, de partidos políticos e de cidadãos em relação aos atrasos verificados no processo bem como ao não envolvimento das instituições locais e da sociedade em geral na definição dos objetivos e operações a realizar na Mata Nacional de Leiria”.
Entre as intervenções consideradas necessárias, inclui-se a salvaguarda do biótopo Corine C12300073 na zona do Samouco.
A intervenção ao longo das linhas de água principais “foi muito limitada em extensão, enquanto que as suas vertentes apresentam sinais acentuados de erosão, o que não permite o restabelecimento de vegetação”.
O cordão dunar litoral “apresenta fragilidades em alguns pontos, consequência dos fogos e da erosão eólica”.
Regeneração natural insuficiente
Por outro lado, “as medidas a cargo do ICNF estão a ser realizadas sem que se conheça o plano a que obedecem”.
“Decisões tomadas desde 2017 têm subjacentes conceitos, objectivos, configuração, composição e gestão da área das quais se desconhece o respectivo enquadramento técnico e legal”, asseguram os especialistas escolhidos pela Assembleia da República.
Na estabilização de emergência, verifica-se uma “intensa degradação das estruturas colocadas” que produz um “resultado actual, do ponto de vista visual”, que “é muito negativo, misturando-se as barreiras de troncos queimados semidestruídas, com o restante material lenhoso ardido de menor dimensão, como resultado da ausência de manutenção daquelas estruturas posteriormente à sua inserção no terreno”.
Quanto à regeneração natural, o OTI lembra que “a esmagadora maioria da germinação de sementes de pinheiro-bravo ocorre nos primeiros meses após o fogo, ainda que se possa prolongar ao longo de dois anos” e que “o pinheiro-bravo da Mata Nacional de Leiria é referido como tendo reduzido potencial de regeneração pós-incêndio devido à escassez de pinhas serôdias”.
Um estudo da regeneração natural efectuado na Primavera-Verão de 2018 revelou densidade de plântulas de pinheiro-bravo reduzida a moderada (cerca de 6.000/ha) e muito elevada (69.000/ha), respectivamente em pinhal com menos de 25 anos de idade e com mais de 65 anos de idade.
“É indicado que a monitorização será estendida por mais dois anos, o que se nos afigura excessivo dado que deveria haver maior celeridade neste processo para o repovoamento florestal”, comentam os peritos do Observatório.
Plantações
Segundo dados do ICNF, a taxa de sucesso nas plantações já efectuadas ronda os 80%, mas o OTI realça que não conhece os cálculos ou métodos que permitiram chegar a esta percentagem.
Ainda segundo informação disponibilizada pelo ICNF, até ao final da época de plantação de 2020, foram instaladas mais de 1,3 milhões de plantas de 22 espécies florestais, desde ripícolas a espécies arbustivas e arbóreas, muitas delas espécies pioneiras.
Já as acções de voluntariado e com o apoio de mecenato no Pinhal de Leiria “são muito localizadas e com uma extensão de poucas dezenas de hectares”, considera o Observatório.
Para os peritos, a predominância de pinheiro bravo é de aceitar, mas deve ser misturada com “uma maior promoção ou instalação de outras espécies, nomeadamente de pinheiro manso e sobreiro, e de povoamentos mistos conduzindo a uma paisagem mais diversificada, heterogénea e resiliente a perturbações”.
Nas recomendações do OTI, destaca-se o imperativo de cartografar todo o território do Pinhal de Leiria de modo a definir a intervenção em todos os talhões.
E de criar “uma completa rede de monitorização integrada, abarcando pragas e doenças, alastramento de exóticas invasoras e avaliação dos processos de regeneração natural e do sucesso das plantações efectuadas”, não esquecendo “a monitorização da erosão e dinâmicas costeiras, por processos que sejam mais do que a mera observação visual in loco”.
Novo modelo de gestão
A conclusão do OTI é que a administração da Mata Nacional pelo ICNF apresenta fragilidades, o que exige outro modelo, que puxe o Município para gestão do Pinhal de Leiria, numa nova entidade, a criar, com a administração central, instituições científicas e privados, que pode ser extensível a outras matas nacionais do litoral. E que pode ser um cooperativa de interesse público, sociedade ou fundação.
Essa entidade gestora "deve ser dotada com as receitas obtidas pelo Estado com as vendas do material lenhoso após o incêndio de 2017".
Segundo o OTI, “o ICNF gere o património florestal segundo as suas decisões, não sendo obrigado nem o fazendo de forma participada com a autarquia nem com as estruturas locais relevantes, como o Observatório do Pinhal do Rei, e com insuficiente recurso aos trabalhos realizados pela Comissão Científica criada no âmbito da recuperação pós-incêndio de 2017”.
“É aceitável ainda que os municípios e os cidadãos não estejam envolvidos na definição do conceito de Mata Nacional de Leiria para o futuro nem na sua gestão?”, perguntam os peritos.
Finalmente, também a estrutura do Pinhal de Leiria, baseada na compartimentação de talhões de malha ortogonal, que representa a concepção de espaços florestais e de ordenamento florestal do século XIX, é posta em causa.
De acordo com o estudo técnico do OTI conhecido ontem, “a manutenção desta estrutura é actualmente questionável” e representa um aspecto que deve ser “equacionado em sede de revisão do Plano de Gestão Florestal da Mata Nacional de Leiria”.