Sociedade
Autora da reportagem A Máfia do Pinhal, sobre o incêndio de 2017 na Mata Nacional de Leiria, acusada por difamação
A jornalista Ana Leal e o ex-director de informação da TVI Sérgio Figueiredo respondem pelo crime de difamação com publicidade. Ministério Público subscreve acusação particular
A empresa Madeiras Afonso (com sede no concelho de Pombal) e o gerente André Afonso deduziram acusação particular, subscrita pelo Ministério Público, para o julgamento, pelo crime de difamação com publicidade, da jornalista Ana Leal e do ex-director de informação da TVI Sérgio Figueiredo, que ainda podem requerer abertura de instrução.
Em causa, a reportagem A Máfia do Pinhal, que começa com fonte não identificada a proferir a frase “se isto sai daqui posso levar um tiro na cabeça”, sobre os lucros da compra e venda de madeira ardida e o incêndio de Outubro de 2017 que destruiu 86% da Mata Nacional de Leiria.
No despacho, o Ministério Público considera que estão recolhidos indícios suficientes de os arguidos terem praticado o referido crime.
No entanto, manda arquivar a queixa contra a TVI, por considerar que, enquanto pessoa colectiva, não é susceptível de ser criminalmente responsável pelo ilícito de difamação com publicidade.
Da autoria de Ana Leal, exibida pela TVI em Abril de 2018, a reportagem revela uma alegada reunião na cave de um restaurante na Praia do Pedrógão em que supostamente vários madeireiros combinaram “pôr fogo ao pinhal para terem madeira mais barata”.
Mais à frente, é dado o exemplo de uma empresa que alegadamente por já estar a contar com o incêndio negociou antecipadamente junto da banca um empréstimo de 500 mil euros para investir em material lenhoso e equipamentos. São exibidos documentos da Mapafoz, também gerida por André Afonso.
A jornalista fala com empresários, proprietários florestais e bombeiros, uns sob anonimato, outros identificados, e a reportagem descreve um negócio de milhões de euros suportado na compra e venda de madeira ardida, estratégias para manipular os leilões do Estado e a intenção de controlar o preço e o mercado do pinho.
André Afonso aparece pela primeira vez aos 19 minutos e 50 segundos, com Ana Leal a perguntar sobre a alegada reunião de madeireiros na cave do restaurante, de que o empresário nega ter conhecimento, e, noutro momento, sobre um contrato para o fornecimento de estilha.
Alegações investigadas noutro processo relacionado com o incêndio de 2017 no Pinhal de Leiria, em que a possibilidade de conluio entre empresas do sector florestal foi descartada pela Polícia Judiciária, depois de monitorizar escutas telefónicas e inquirir os empresários, incluindo, o proprietário do restaurante na Praia do Pedrógão, entre outras diligências, que seguiram inúmeras pistas e denúncias, mas terminaram com uma única arguida, uma mulher residente na Burinhosa, acusada de iniciar uma queimada, mas, entretanto, já absolvida.
A acusação contra Ana Leal e Sérgio Figueiredo (que incorrem numa pena até dois anos de prisão ou multa não inferior a 120 dias) argumenta que a reportagem contém referências directas e indirectas aos queixosos que “qualquer mediano espectador entende como incriminatórias, no sentido de pretender atribuir-lhes a prática dos actos na origem do incêndio”.
Mais, acrescenta que “foi com o objectivo de induzir no público a ideia de ter sido a empresa Madeiras Afonso e o seu gerente André Ferreira Afonso que provocaram o incêndio que foi conduzido e produzido todo o programa” e “toda a propaganda emitida à volta dele, antes e depois da sua emissão”.
“Criou-se a imagem de se tratar de pessoas e entidades perigosas, capazes de matar”, lê-se na acusação.
Sobre o autor da frase “posso levar um tiro na cabeça”, os queixosos consideram que Ana Leal tinha “obrigação de saber que esse informador exercia um acto de vingança”, motivado “por qualquer diferendo”.
A acusação sustenta que a reportagem da TVI se baseia em informações falsas e infundadas, sem provas, que violaram interesses dos ofendidos e lhes causaram danos morais e patrimoniais de grande monta.
Queixas contra ICNF arquivadas
Entretanto, noutro processo, o Ministério Público mandou arquivar, no mês passado, queixas contra o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) e contra incertos também motivadas pelo incêndio no Pinhal de Leiria que deflagrou a 15 de Outubro de 2017.
O inquérito teve início numa denúncia contra os organismos e respectivos responsáveis incumbidos da gestão da Mata Nacional de Leiria desde 2003, queixa apresentada mês e meio depois do incêndio de Outubro de 2017, depois complementada por vários aditamentos, num dos quais o autor (morador no concelho da Marinha Grande) pedia ao Ministério Público para investigar, ainda, a actuação da Câmara Municipal da Marinha Grande e da EDP.
Em causa, eventuais crimes de administração danosa, dano qualificado, omissão de auxílio e ofensa à integridade física negligente, que visavam a antiga Autoridade Florestal Nacional e o actual ICNF e dirigentes.
Ao inquérito, foi junta outra denúncia, apresentada por cinco proprietários florestais, contra incertos, em que reclamam prejuízo conjunto no montante de milhão e meio de euros, de mancha florestal ardida, com 230 hectares.
Mais de três anos depois, há decisão. O Ministério Público conclui que não resultou demonstrada prática criminosa e não se verifica qualquer dos crimes.
Mão humana, mas única arguida foi absolvida
Ainda noutro processo relacionado com o Pinhal de Leiria, já tinha sido absolvida em Novembro de 2019, pelo Tribunal de Alcobaça, uma mulher, então com 68 anos de idade, acusada da autoria de uma queimada na Burinhosa.
Na sentença, a juíza considera impossível determinar a culpabilidade da arguida, por inexistência de provas ou mesmo indícios. E o Ministério Público, responsável pela acusação, também sugeriu a absolvição, durante o julgamento.
Ficou provado, no entanto, que dois reacendimentos estão na origem do mar de chamas que em Outubro de 2017 engoliu 86 por cento do Pinhal de Leiria. Ambos com intervenção humana.
Na Praia da Légua, concelho de Alcobaça, o incêndio começou (e terminou) a 12 de Outubro, com causa dolosa, segundo o Ministério Público. Foi encontrado um artefacto incendiário: um púcaro de resina com uma pinha e caruma no interior, previamente ateadas. O reacendimento aconteceu às 13:51 horas do dia 15 de Outubro.
Na Burinhosa, a 10 quilómetros, o incêndio começou antes das 7 horas do dia 15 de Outubro e o Tribunal de Alcobaça considerou provado que também teve mão humana (uma queimada). Os bombeiros declararam-no extinto a meio da manhã. O reacendimento ocorreu às 14:33 horas, no mesmo dia.
Avançaram sem controlo e entraram no Pinhal de Leiria, num sinistro de enormes proporções que lavrou noutras matas nacionais do litoral centro e em terrenos particulares e só foi considerado extinto na tarde de 20 de Outubro, já na zona de Leirosa, Figueira da Foz.