Economia

Burocracia na Câmara trava empresários da Marinha Grande

10 jan 2019 00:00

Os empresários reclamam das taxas elevadas, da morosidade na apreciação dos processos industriais e da “falta de pulso” dos políticos para conduzir os projectos, deixados à responsabilidade dos técnicos da Câmara

burocracia-na-camara-trava-empresarios-da-marinha-grande-9679
Daniela Franco Sousa

Desta vez é o presidente do Conselho de Administração da Böllinghaus quem critica a falta de apoio por parte da Câmara da Marinha Grande no acompanhamento de um projecto de investimento de 30 milhões, que pode criar 100 postos de trabalho naquela unidade de Vieira de Leiria.

Mas ao longo dos sucessivos executivos têm sido diversos os casos de investidores que admitem ter sentido entraves na apreciação dos seus processos, para prejuízo do negócio e do desenvolvimento do concelho.

O JORNAL DE LEIRIA ouviu os empresários, críticos quanto a taxas elevadas, quanto à carga burocrática e à demora na apreciação dos processos, gente que desespera com a “falta de pulso” dos políticos e com uma gestão dos processos que parece depender sobretudo dos técnicos da Câmara. E escutou também o vereador das Obras, que reconhece o problema, mas aponta o dedo aos planos de ordenamento desactualizados bem como à falta de pessoal para trabalhar numa área que, no caso da Marinha Grande, é pautada por uma dinâmica extraordinária.

Na passada quinta-feira, o JORNAL DE LEIRIA dava eco da crítica feita pelo presidente do Conselho de Administração da Böllinghaus no Jornal de Negócios. Segundo Hartwig Härtel, o grupo alemão planeia realizar o seu maior investimento de sempre e construir uma nova área de laminagem de aço. Mas Hartwig Härtel não poupa críticas à Autarquia.

"Precisava de mais apoio por parte da Câmara Municipal. Temos de construir um novo edifício, mas eles dizem que não é permitido fazê-lo nas dimensões que queremos. É uma questão de cinco metros! Acho que a autarquia não mostra interesse pelas empresas de Vieira de Leiria. Vê os grandes negócios dos moldes e do vidro [na Marinha Grande] e está muito contente com os impostos que vêm daí. Mas se tiver demasiados problemas com isto, terei de pensar em sair de Portugal”, considera o responsável (ver caixa).

Casos idênticos têm vindo a suceder- se ao longo dos anos no concelho. Director de fábrica da Santos Barosa (SB) entre 2000 e 2017, Gilberto Pereira acompanhou de perto um processo de licenciamento, que acabou por ter luz verde da parte da Câmara, mas já demasiado tarde para a administração daquela vidreira. O antigo director explica que a SB avançou com um pedido de licenciamento para a construção de armazéns de produto acabado durante a presidência de Barros Duarte, que suspendeu o mandato em 2007. O processo transitou para o mandato de Alberto Cascalho e acabou por ser cancelado já com Álvaro Pereira à frentedo Município. “Atravessou três vereações”, frisa Gilberto Pereira.

Além do problema das taxas elevadas que eram cobradas à empresa, que neste caso “chegavam a cerca de 500 mil euros, para um investimento total de 3,5 milhões de euros”, o ex-director salienta que também a apreciação foi morosa. “O Município ainda reviu o valor das taxas, mas entretanto chegou a crise em 2008 e o investimento deixou de ser prioritário”, recorda Gilberto Pereira.

Ou seja, quando o projecto foi finalmente aprovado, já “a resposta vinha fora de prazo”, pelo que em 2013 “a empresa deixou cair esse licenciamento” (ver caixa).

Em 2014, e depois da presença dos administradores da empresa nalgumas reuniões de Câmara, uma hasta pública punha fim ao impasse entre a Carfi e a Autarquia. Em causa estava um caminho público projectado pela Câmara, que passava em frente à Carfi. O objectivo da Autarquia era abrir um acesso alternativo à zona industrial, que pudesse ser usado em caso de emergência. Porém, defendia a administradora da empresa, Catarina Figueiredo, se essa via fosse construída, os camiões que se deslocavam à Carfi deixavam de ter espaço para realizar cargas e descargas, já que três cais da unidade estavam localizados nessa área. “Inviabiliza a actividade da Carfi”, apontava a responsável.

E por causa desse caminho público, a Câmara ainda não tinha renovado a licença de utilização da fábrica, um ano depois de a empresa ter feito esse pedido. Sem licença, estavam em causa não só 180 postos de trabalho que a empresa gerava, mas também mais duas dezenas de empregos que a Carfi pretendia criar com uma ampliação da unidade.

Depois de meses de impasse, a Assembleia Municipal aprovava em Julho de 2014 a desafectação do caminho público que passava à frente da Carfi, levando depois essa área a hasta pública. A Carfi adquiria o espaço.

Já em Setembro de 2016, o JORNAL DE LEIRIA reportava a indignação da administração da Bourbon AP, hoje denominada PVL Marinha Grande. O grupo precisava urgentemente de ver a sua situação regularizada no concelho, ao abrigo do Decreto lei 165, para receber um projecto de fôlego de um dos seus maiores clientes, sob pena deste vir a realizá-lo em Espanha. Todavia, apesar da insistência do grupo francês, a regularização da situação só viria a acontecer “largos meses” depois, relata fonte da PVL Marinha Grande.

“O grupo tinha dois projectos para a Marinha Grande. Um deles passava pelo aumento da fábrica mais antiga, o que implicava a alteração no PDM. O outro, de cerca de oito milhões de euros, previa a ampliação da segunda fábrica, incluindo a criação daquela que se tornou a linha de pintura mais moderna do País.” Quer para um projecto quer para o outro foi preciso aguardar vários meses, recorda a mesma fonte da PVL, lembrando que, da parte da Câmara, justificavam a demora com a necessidade de obter autorização de várias entidades, entre elas o IAPMEI e a CCDR Centro.

“O projecto relacionado com a nova linha de pintura iria arrancar em Setembro de 2019, mas a PSA já nos pedia que tudo estivesse pronto até ao final de Dezembro de 2018”, aponta a mesma fonte. “Dada a urgência, deslocou-se até à Marinha Grande um dos chefes franceses do grupo. Mas, no dia da reunião agendada com um dos responsáveis pela divisão das obras, os membros da PVL não foram recebidos. A reunião só aconteceu depois”, prossegue a fonte.

“A imagem passada foi tão má, que o presidente Paulo Vicente nos enviou uma carta a pedir desculpa. Foi vergonhoso”, critica.

Nem só as empresas de grande dimensão têm sentido dificuldades. Pedro Bernardo, gerente da Pedro Bernardo – Estruturas e Moldes, explica que também a sua pequena empresa tem sido prejudicada com a “burocracia” da Câmara. O empresário criou a fábrica em 2007, na Moita, onde ainda mantém a sede fiscal da sua indústria. Mas há cinco anos, devido ao “alto valor das rendas dos pavilhões disponíveis” naquele concelho, acabou por mudar as suas instalações para Pataias, em Alcobaça. Entretanto a empresa cresceu, emprega 12 colaboradores, e pretende iniciar-se na exportação.

Para avançar com a sua estratégia de crescimento, Pedro Bernardo conseguiu entretanto adquirir terreno próprio na Moita. Mas, lamenta o empresário, desde que o seu pedido de construção deu entrada na Câmara da Marinha Grande, entre várias reuniões, já se passou um ano. “Acho que há mais força da parte de quem trabalha na Câmara do que da parte dos políticos. Falta pulso”, considera Pedro Bernardo. “Tenho força para avançar com o investimento e depois há este bloqueio. E nestas coisas ou se investe hoje ou depois já é tarde”, acrescenta o empresário, que diz já ter rejeitado algumas encomendas por falta de capacidade de resposta. O seu investimento iria criar mais postos de trabalho, realça Pedro Bernardo (ver caixa).

Empresário e vereador da oposição, Aurélio Ferreira também não poupa críticas: “se a minha empresa vivesse naquela anarquia [da Câmara da Marinha Grande] já tinha encerrado”. Também este empresário acredita que neste Autarquia “a decisão está nos técnicos”. E isso sucede “porque não há liderança”, observa. “Os técnicos das obras queixam-se que são sistematicamente interrompidos. Agora estão a fazer um trabalho, daqui a pouco pegam noutro. Pagam em todos e não fazem nenhum. Porque é uma desorganização”, aponta o vereador.

Contactado pelo JORNAL DE LEIRIA, um arquitecto que tem acompanhado vários projectos em diferentes municípios da região salienta que a burocracia não se coloca só nos licenciamentos de indústrias como também, e muito, nos licenciamentos de casas particulares. No caso da Marinha Grande, acontece “por falta de competência e de consensopolítico” e também “porque há um enorme boicote dos técnicos ao trabalho dos políticos”. Ou seja, “o poder político é fraco e os técnicos boicotam, porque receiam ter mais trabalho e têm medo dos tribunais. Ninguém quer assumir responsabilidades. E também não há respeito pelos munícipes. Não entendem que se trabalham na Câmara é para arranjar soluções para as pessoas”, aponta o arquitecto.

Ex-presidente da Associação Empresarial da Região de Leiria (Nerlei) e director-geral da Vipex, empresa sediada na Marinha Grande, Jorge Santos nada tem a dizer sobre o tempo de apreciação do mais recente projecto da sua unidade. “Fizemos obras e as respostas foram dadas atempadamente”. Contudo, reconhece que o Regulamento Municipal da Edificação e Urbanização (RMEU) “está desajustado em relação às necessidades de investimento das empresas”, com taxas desmaiado altas. E exemplifica com o que sucedeu com a Vipex: “a empresa pagou 28 mil euros por dois mil metros quadrados de construção”.

O ex-presidente da Nerlei defende que isso “é altamente desmotivador para os empresários”. Ao ponto de o assunto ter merecido reuniões entre os responsáveis pela Nerlei e pela Associação Nacional da Indústria de Moldes (Cefamol) com Álvaro Pereira e Paulo Vicente, que eram à data presidente e vice-presidente da Câmara.

“É verdade que chegam à Nerlei preocupações das empresas relativas à morosidade e burocracia existente na relação com as autarquias. Muitas vezes os tempos da actividade empresarial não são os mesmo da administração local”, reconhece António Poças. “A direcção da Nerlei esteve muito recentemente reunida com os presidentes das câmaras municipais que integram a Comunidade Intermunicipal (CIM) da Região de Leiria, com o objectivo de agilizar a relação entre as empresas e os municípios”, adianta o actual dirigente.

No âmbito desta reunião,“foi proposto pelos autarcas a criação de um grupo de trabalho, composto por um elemento técnico de cada autarquia e pela Nerlei, com o objectivo de identificar as principais questões que preocupam as empresas, no seu relacionamento com os municípios, para depois, em conjunto com os técnicos das autarquias, analisar regulamentos procurando integrar neles essas preocupações, melhorando assim o relacionamento entre tecido empresarial e administração local”.

Para António Poças, “esta atitude pró-activa revela da parte das autarquias uma vontade e abertura no sentido de contribuírem o mais possível para a criação de um ambiente favorável ao desenvolvimento empresarial”.

Autarquia responde
Soluções à vista para SB e Böllinghaus


Carlos Caetano, vereador das Obras, explica que, no que diz respeito à empresa Pedro Bernardo, o investidor apresentou um projecto de construção, que já foi aprovado pela Câmara. “Como se trata de um local onde não existem infraestruturas, quem vai construir a fábrica tem de comparticipar na execução das mesmas. Há uma taxa a pagar”, observa o autarca. O vereador admite que o ideal seria a Câmara suportar as infra-estruturas. E também admite que o valor da taxa é elevado para uma pequena empresa. No entanto, também frisa que estes são os valores actualmente previstos pelo RMEU. Reduzir as taxas implica revogar a decisão anterior da Câmara e isso também requer procedimentos e leva tempo. Sobre alguma morosidade associada a este processo em concreto, Carlos Caetano explica que “entretanto mudou o responsável do departamento jurídico, que foi substituído por uma senhora, que sofreu um acidente e ficou de baixa médica”. Além do RMEU também o Plano Director Municipal (PDM) “está desactualizadíssimo”, reconhece o vereador. É de 1995, está a ser revisto e deve estar pronto em 2020, estima o autarca. A solução dos problemas da Böllinghaus e da SB prendem-se com o PDM e podem ter os dias contados. Como havia necessidade de retirar a circulação de pesados da zona de Picassinos, a SB, hoje detida pela Vidrala, juntamente com a Câmara, está a retomar um antigo projecto de ligação da unidade fabril, pela Rua dos Cortiços, até à Estrada do Guilherme, próximo da Zona Industrial, junto da qual vão construir os armazéns de produto acabado (dos quais tinham desistido em 2013). E como quer no caso da SB como no da Böllinghaus, as empresas apresentam projectos de construção cuja altura das unidades é superior aos limites máximos de altura previstos pelo PDM, a Câmara conseguiu obter autorização da CCDR Centro para suspender pontualmente o PDM naqueles dois locais, com o compromisso de que a Autarquia venha a adoptar as novas medidas em todo o concelho aquando da revisão do plano. Em suma, observa o vereador, a morosidade das decisões passa por estas “ferramentas obsoletas” e também pela falta de pessoal, de engenheiros e arquitectos, numa departamento de grande dinâmica. “Entre Janeiro e Novembro de 2018 deram entrada 480 projectos de obras particulares e foram despachados 1200”, frisa o edil.