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Cantar, orar e comer: as diferentes formas de celebrar os mortos

31 out 2024 08:30

Missa de corpo presente, cânticos ou enterramentos virados para Meca. Cada crença trata a morte de diferentes maneiras e de acordo com as suas convicções

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O momento de romaria aos cemitérios é no dia de Finados, 2 de Novembro, e não no dia de Todos os Santos, no dia 1
Ricardo Graça

Para alguns a morte não é o fim, mas o início de algo melhor. Para outros, o falecimento é o dizer adeus para sempre à pessoa de quem se gosta. Desde os primórdios da humanidade que cada cultura dá uma importância específica ao corpo morto e assume rituais diferentes. Cientificamente, a morte é a irreversibilidade de um processo biológico, onde todos os órgãos deixam de funcionar.

Amanhã comemora-se o Dia de Todos os Santos, que, para a Igreja Católica, significa a celebração de “todos os santos que já estão no céu, na glória de Deus”, mas não são os santos consagrados pela Igreja. São os entes que morreram e que os católicos acreditam que já estão no céu. “São as pessoas importantes para nós, que celebramos. O Dia de Todos os Santos é de celebração e não de romaria ao cemitério, como muitas vezes acontece”, sublinha o padre David Barreirinhas.

Sábado, 2, é o Dia de Finados, que assinala a romaria aos cemitérios para rezar e chorar pelos mortos. É neste dia que as famílias visitam as sepulturas, onde estão os seus entes queridos. “Tem uma carga de sufrágio [oração]. Reza-se por aqueles que ainda estão no purgatório e que necessitam do sufrágio da Igreja para participarem na vida eterna”, afirma David Barreirinhas.

Se o dia 2 calhar durante a semana, este pároco adia a missa na igreja, onde são evocados os nomes de todos os que morreram no último ano, e a romagem ao cemitério para o domingo seguinte. “Como forma de recordar os que já morreram, no cemitério, são acendidas velas em cada campa”, explicita.

Na região de Leiria, são várias as culturas que se misturam e respeitam, com crenças diferentes na hora de dizer adeus – ou um até já – aos familiares ou amigos. O JORNAL DE LEIRIA foi tentar conhecer um pouco mais sobre os rituais funerários tradicionais em diferentes países, cujos migrantes povoam o nosso território.

Na hora do adeus

Entre os muçulmanos de Marrocos, quando uma pessoa morre, é pedida misericórdia a Deus e há uma preocupação em preparar o corpo para a sepultura, explica Hamza. Zacarias, nome que outro marroquino, natural de Beni-Mallal, adoptou há mais de 20 anos em Portugal, acrescenta que “se morrer em casa, o imã vai dar o banho ao defunto e enrola-o num lençol branco”. Segue para a mesquita, onde se reza. No cemitério, antes de o corpo descer à terra, em pé e sem caixão, há também um momento de serem proferidas mais algumas preces. A cova não tem muito mais do que 30 centímetros de largura. “É mesmo só para caber a pessoa.”

No mesmo dia, à noite, a aldeia junta-se e partilha uma refeição na casa do morto. “Quando o marido morre, a mulher veste de branco durante 40 dias, não pode sair de casa, nem usar maquilhagem”, conta Zacarias, ao revelar que se acredita que se a mulher sair à noite “vira monstro”.

Na Ucrânia, os ortodoxos raramente utilizam a cremação, que não é bem aceite. “O corpo é enterrado e nunca mais é retirado”, adianta Alina Shevchenko, ao explicar que o espaço no cemitério é criado de forma a que os familiares directos possam também ser enterrados, ficando uns ao lado dos outros. “Os meus avós, por exemplo, ficaram juntos.”

Durante o velório o caixão está aberto, o que permite às pessoas despedirem-se e rezarem. É aconselhado o uso de roupa de cor escura a quem participa nas exéquias e as mulheres usam um lenço na cabeça. “Há música na igreja com o caixão presente e poderá realizar-se uma pequena procissão até ao cemitério”, afirma.

Depois do sepultamento, todos se reúnem numa refeição conjunta que pretende “lembrar o falecido”, numa espécie de homenagem, momento que pode durar mais do que um dia e permite também aos entes que não puderam ir ao funeral prestar a sua homenagem.

Da terra para o paraíso

Praticantes do Islão, Ousman e Alagie, naturais da Gâmbia, acreditam no Paraíso, para onde vão as “boas pessoas”. Quando alguém morre, a família, amigos e vizinhos juntam-se num velório até ao dia seguinte, perto das 17 horas. O cadáver é preparado antecipadamente por alguém, como um acto de purificação. Este acto deve ser praticado por alguém do mesmo sexo da pessoa falecida. O corpo é depois envolvido num lençol branco.

A tradição determina que o funeral ocorra o mais cedo possível. As orações são normalmente realizadas primeiro na mesquita e depois no cemitério. “É proibido dizer o nome do morto ou falar sobre algo que ele tenha feito de errado. O imã reza ao corpo e pergunta se alguém tem alguma coisa contra ele. Acreditamos que se a pessoa tiver sido má em vida o seu espírito vai ficar ‘preso’ para sempre”, relatam Ousman e Alagie, admitindo, contudo, que é possível perdoar.

Os rituais no Paquistão, também muçulmanos, são parecidos. “A família reúne-se para rezar junto ao caixão com o defunto que fica em casa. Outras pessoas também vão até lá. São três dias a rezar”, conta Atif. O ritual da lavagem e de vestir de branco também ocorre. “Apesar de tristes, há sempre uma refeição para partilhar entre todos. Um momento de convívio”, afirma Atif.

Virado para Meca

No Afeganistão, a família mais próxima junta-se para fazer o luto e fica em casa durante 24 horas até as cerimónias começarem. O cadáver é levado para uma zona reservada da mesquita, onde os parentes mais próximos o lavam e o enrolam, nu, num lençol branco, sinal de pureza. No local de culto os restantes lêem o Alcorão. Depois de preparado o corpo é levado para o cemitério de carro se for longe, em ombros se for mais perto, relata Qasim.

A leitura do Alcorão é repetida pelos mais próximos nos dias seguintes e 40 dias depois, há uma nova cerimónia na mesquita. Enquanto dura esse período de cerca de cinco semanas, todas as sextas-feiras, por volta das 5/6 da tarde, família e amigos juntam-se a ler o Alcorão e a rezar, seguindo-se o jantar. “Acreditamos que é ao 40.º dia que a pessoa chega ao céu.”

“No Islão há duas maneiras de enterrar: com o caixão ou sem ele. Na minha família é sem caixão. O defunto fica deitado sobre o seu lado direito, com a cara virada para Meca”, afirma, ao acrescentar que são deitados punhados de terra alternadamente com pedras.

Na Igreja Baptista a morte é celebrada com cânticos e agradecimento a Deus pela vida. Carlos Conceição, membro deste culto, explica que o funeral é o “mais simples possível”. “Há o culto da celebração da vida da pessoa, que é feita pelo pastor. Quando o corpo desce à terra cantamos”, revela.

Com muitos rituais idênticos à Igreja Católica, Carlos Conceição sublinha que na Igreja Baptista se acredita que a pessoa vai para um local melhor. “Apesar da tristeza que é a perda, celebramos a vida eterna. Amigos e familiares têm oportunidade para falar um pouco sobre o defunto e canta-se”, reforça.

O povo Yanomami

Não é usual ouvir falar da morte de alguém da comunidade chinesa ou sequer do seu funeral. Jaime Alexandre, elemento da Associação de Agentes Funerários do Centro, revela que “na cultura dos chineses não se publicita a morte, porque é vista como um sinal de fraqueza”. “Realizei um funeral no cemitério dos Pousos, onde o corpo ficou enterrado numa campa em forma oval, para que a água da chuva não entrasse e a pessoa ficou virada para onde tinha a sua loja. O funeral realiza-se após o pôr do sol”.

O povo Yanomami, uma das tribos indígenas que ainda se mantém isolada na floresta da Amazónia, entre o Brasil e a Venezuela, tem um ritual fúnebre próprio. Após a morte, o corpo é colocado numa cesta e suspenso numa árvore num local pouco frequentado da floresta, até ficar apenas em esqueleto. As ossadas são depois recolhidas, queimadas e colocadas numa cabaça, que é selada com cera de abelha. Enquanto decorre este processo, vários emissários são enviados às comunidades próximas (que podem ficar à distância de vários dias a pé), para as convidar a participar nas cerimónias de homenagem ao morto. É também iniciada uma caçada colectiva, para assegurar comida para os convidados.

No dia da festa, a comunidade enlutada prepara uma papa de banana num tronco de árvore escavado, onde são misturadas as cinzas do falecido. Os parentes mais próximos são convidados a ingerir uma porção dessa papa, para absorver o que de bom tinha o familiar desaparecido. A partir desse cerimonial, o nome do morto nunca mais é pronunciado.

Dia dos mortos no México

Os funerais no México, cujas tradições se baseiam numa mistura de religiões indígenas mesoamericanas e católicas, são realizados num ambiente de alegria, com música e comida. Após a morte da pessoa, os seguidores deste ritual realizam uma vigília com familiares e amigos que pode durar até 48 horas, onde todos comem e bebem juntos, ao mesmo tempo que rezam. É habitual quem chega, trazer presentes para a família. O processo de luto é um evento comunitário repleto de oração, comida, música e até risos, enquanto se partilham memórias do defunto. Após uma lavagem, o corpo é vestido com as roupas favoritas do morto, que pode levar artigos pessoais como joias. Para os mexicanos a morte não é um fim, mas uma continuação da viagem, para outro reino. Durante nove dias consecutivos após um funeral, reza-se pelo descanso eterno.

O Dia dos Mortos, que se assinala também no dia 2, é um festival em honra dos que já faleceram. É o dia em que se acredita que os espíritos dos entes queridos que já morreram voltam à Terra para visitar as suas famílias. São erguidos altares e partilha-se a comida preferida dos mortos.

 

Opções

Cremação e centros civis

O número de cremações tem vindo a aumentar em Leiria. A Igreja Católica aceita a cremação, apesar de se considerar que se “está a negar a ressurreição”, explica o padre David Barreirinhas. Nestes funerais é também possível realizar as exéquias ainda com o corpo presente ou depois, perante as cinzas. Apesar de a tradição católica prever o velório do corpo, David Barreirinhas admite que se foi perdendo o acompanhamento do cadáver durante toda a noite. “Agora o corpo chega quase directo para o funeral”, confessa. O agente funerário Jaime Alexandre constata que se tem vindo a perder a celebração religiosa. “Cada vez há mais pessoas que optam por cerimónias civis em centros funerários, por não terem qualquer tipo de crença e há quem vá directamente para o crematório”, afiança. Segundo explica, a cremação tem de ser realizada dentro de um caixão de madeira, sem quaisquer elementos metálicos. As cinzas podem ser entregues à família dentro de um recipiente apropriado ou colocadas numa sepultura, jazigo, ossário ou columbário, devidamente acondicionadas. Quem não pretende as cinzas do ente querido, elas são depositadas no cendrário, juntamente com todas as outras não reclamadas.