Sociedade

Carlos Santos Pereira: “Temos todos as mãos sujas de sangue”

18 fev 2016 00:00

O jornalista garante que, em cenários de guerra, os media são manipulados por agências de comunicação e pressionados a veicular informação falsa

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Carlos Santos Pereira, jornalista
Foto: Ricardo Graça
Alexandra Barata

Diz que a Alemanha está a exercer a mesma política que Hitler e que as medidas de austeridade aplicadas a Portugal e à Grécia não têm a ver com racionalidade, mas com questões ideológicas

Qual foi a guerra que mais o marcou?
Balcãs, sem dúvida nenhuma. Kraina, Bósnia, Kosovo representaram um ponto de viragem na história europeia, no quadro geo-estratégico e das relações internacionais, nas suas diversas componentes: políticas, diplomáticas, institucionais, legais. No caso do Kosovo, ao nível das estratégias de comunicação, operações militares, práticas políticas e diplomáticas e questões jurídicas que este conflito levantou. O conflito dos Balcãs abriu a era em que estamos agora. Na perspectiva jornalística, teve uma importância crucial. Vivi este conflito, particularmente a questão da Kraina, muito por dentro, e não apenas como observador. Deixou-me marcas muito vivas.

Quanto tempo acompanhou esse conflito?
Um ano antes das primeiras hostilidades, peguei numa mota e corri a Jugoslávia de ponta a ponta. Entrevistei montes de gente. Quando cheguei ao fim, disse que era inevitável haver uma guerra. E escrevi isso numa reportagem para o Expresso. O Vicente [Jorge Silva] começou aos gritos comigo porque estava a anunciar uma guerra. Infelizmente, um ano depois, rebentou. Acompanhei-a até ao momento em que a NATO entrou no Kosovo. Depois, fiz meia dúzia de reportagens com a tropa portuguesa. As memórias ainda me doem tanto que não quero voltar àquelas paragens.

A que se refere em concreto?
À Kraina. Foi um genocídio, no sentido técnico do termo, feito com a cumplicidade militar e política dos EUA e da Europa, que estiveram envolvidíssimos naquela operação. Temos todos as mãos sujas de sangue. Ainda me lembro de um oficial croata me dizer, pouco antes do ataque à Kraina, que as ordens eram muito simples. Ninguém podia dar um único tiro sem ser comandado pelos EUA. Foram os EUA que montaram a operação toda. A capacidade de mentir, de manipular, ultrapassou tudo o que era capaz de imaginar.

Foi nessa ocasião que teve divergências com alguns editores que queriam que divulgasse a informação veiculada pelas agências e não a que tinha recolhido?
Sim, tive choques sistemáticos com diversos editores. Mas não fui o único. Martin Bell, um famoso repórter, dizia que tinha mais problemas com os editores do que com os inimigos.

Esses editores duvidavam da informação que tinha investigado?
Não era duvidar. Os editores lidam com uma série de condicionantes: o ambiente informativo, o que a concorrência diz, as expectativas do próprio público. Têm uma perspectiva da informação completamente diferente da do repórter no terreno. Normalmente, somos atirados para um cenário qualquer, em relação ao qual se criou uma visão mais ou menos consensual e, quando chegamos lá, deparamo-nos com realidades bem mais complexas. E o choque é inevitável. Queríamos denunciar e dar uma visão das coisas que não jogava com a linha da NATO e dos EUA. E como a questão da informação era ultra- sensível naquele conflito, havia pressões enormes.

Alguma vez foi censurado ou obrigado a fazer auto-censura?
Nunca deixei. Agora, porem-me a andar ou tentarem evitar que falasse, sim. O caso da Ucrânia é um bom exemplo. Em toda a parte, estava proibido de contar o que vi. Só publiquei a história na Revista de Ciências Militares. Ao contrário do que seria de esperar, a multiplicação dos canais de comunicação e de informação e o acirrar da concorrência tem o efeito de afunilamento. Nunca a informação foi tão uniforme, tão igual. A resposta à concorrência não é tentar fazer diferente do vizinho. É garantir que eu não deixei de dar aquilo que ele também deu.

Qual era a versão que queriam que contassem?
A versão das agências de comunicação e relações públicas famosíssimas pelo papel que tiveram nestes conflitos, que cozinharam o enquadramento histórico e político para os jornalistas fazerem a contextualização das notícias. E depois tudo o que os órgãos de comunicação, políticos e diplomatas diziam à volta. Criou-se esse tal ambiente de consenso. Era um processo em que participava muita gente, mas tinha pivots. Um deles foi a CNN. A CNN é um excelente exemplo do que é mau jornalismo. Pelas ligações que tinha à Administração norte-americana, acabava por servir de padrão de referência, que era adoptado mais ou menos em toda a parte. Durante a primeira Guerra do Golfo, em 1991, a cobertura foi feita em grande parte com o José Rodrigues dos Santos perante a câmara e com um ecrã com a CNN ao lado, que ia traduzindo.

Foi veiculada informação falsa desses conflitos?
Mentiu-se e de que maneira. Ultrapassou-se aquilo que conseguia imaginar como capacidade de manipular e de mentir. E a forma como toda a gente comprava isto.

Com consequências devastadoras no xadrez internacional.
Enormíssimas. Aquilo a que estamos a assistir no plano socio-económico e a política europeia em relação à Grécia e a Portugal é ao ensaiar de modelos novos. Estas situações estão a servir de laboratório a uma enormíssima engenharia social e política. Olhe-se para a evolução da própria União Europeia. No fundo, funcionou da mesma maneira: ensaiaram-se práticas no plano militar, político, diplomático, da justiça internacional, mas fundamentalmente no plano da comunicação, que desempenhou aqui um papel crucial.

E isso continua a acontecer hoje?
Continua. Aliás, “institucionalizou-se”, destruindo coisas sagradas: valores e dimensões em que todos nos reconhecíamos e que foram completamente deturpados e viciados. Dou o exemplo da justiça internacional. Assisti a momentos em que a “comunidade internacional” assumiu o corpo da Casa Branca. Conseguiu-se conspurcar completamente pilares fundadores de uma certa ideia de moralidade, de justiça internacional. Quando oiço falar em justiça internacional, só me apetece dar uma gargalhada. Sobretudo, depois de ter visto o Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia.

Que histórias ficaram por contar?
Muitas. O papel do jornalista, como antena de informação no terreno, é ir dando notícias. Como o dia só tem 24 horas e temos deadlines, acaba por escassear o tempo, a atenção e a disponibilidade para ângulos humanos. Apanhamos os efeitos da tempestade sem termos capacidade de intervir. No Norte da Bósnia, numa das fases mais violentas do conflito, em 1993, num dia de imensa actividade militar, deparei-me com uma família que tinha fugido e que se ia instalar numa casa abandonada por alguém que também tinha fugido aos combates. Eram três almas: pai, mãe e filho, que tinha andado a combater e estava completamente perturbado. Tinham perdido tudo. Falei um pouco com eles e segui o meu caminho. Cheguei ao fim do dia e fiz a reportagem contando o que se tinha passado naquele dia e quem tinha atacado o quê. Hoje, quando olho para trás, penso que a minha reportagem devia ter sido aquela família. Aquela é que era a guerra. O drama de alguém que, de repente, fugiu de casa com as bombas a cair-lhe em cima, deixou tudo o que tinha e estava à procura de um tecto onde se abrigar e, se calhar, sem um pão para comer ao jantar. E eu apanhei um avião para Lisboa e, à noite, estava a beber um bom vinho e a comer um bom jantar. Ainda hoje me sinto culpado.

Como é que as partes em conflito vêem os jornalistas?
O Exército regular, com base em procedimentos mais ou menos estabelecidos. Quando lidamos com forças mais irregulares, as câmaras de televisão têm um efeito contraditório. Por um lado, geram reacções de hostilidade, porque são um testemunho inoportuno, que vê e regista, e, ao mesmo tempo, geram uma enorme atracção. Mesmo os chefes de guerra mais primitivos apareciam com uma boina na cabeça ou com uma capa na mão, e os rufiazecos de esquina, de repente, eram generais. É curioso como é que percebiam, imediatamente, o papel da comunicação.

"Directos alteraram jornalismo para pior"
Carlos Santos Pereira

Como tem acompanhado a entrada do jornalismo na era digital?
Tenho alguma resistência, porque sou preguiçoso. Mas, hoje, ninguém consegue fazer notícias sem acompanhar esse universo. As técnicas de recolha e verificação da informação e as questões deontoló- gicas não se deviam alterar substancialmente pelo facto de se alterarem as plataformas. O problema é atestar a credibilidade daquilo que aparece. Nas formas tradicionais também se mente e se manipula. Agora, é uma informação menos imediata, mais filtrada e com mecanismos de controle, que vão ter de ser reiventados para estas plataformas.

Refere-se à rapidez com que se produzem notícias, em que quase não há tempo para reflectir?
Sim. É um universo que gera muito mais interrogações do que respostas. Que efeito é que vai ter sobre o jornalismo é uma interroga- ção importante e urgente. Criou-se uma forma de comunicar com o público, sem a qual hoje este não passaria, mas que levanta o problema do rigor de certas práticas que esse universo, como é um pouco mais fluído, se arrisca a relativizar.

No livro Jornalistas, profissão ameaçada, Felisbela Lopes coloca a mesma questão a 100 repórteres: quais os maiores constrangimentos à liberdade de imprensa que os jornalistas portugueses enfrentam hoje? Qual seria a sua resposta?
No panorama jornalístico actual, há uma tendência cada vez mais crescente para se confundir informação e jornalismo com publicidade, comunicação institucional ou empresarial, quando deviam ser universos claramente distintos. Outra prática instalada é o infotainment, em que se misturam jornalismo e entertainment. Esse traço é muito vincado na televisão, mas acabou por contagiar outros media. Depois, estamos a passar rapidamente de um jornalismo de interpelação, questionamento e interpretação para um mero jornalismo de celebração. Os audiovisuais, e a televisão em particular com a prática sistemática do directo, alteraram a maneira de fazer jornalismo claramente para pior. Por fim, há uma tendência crescente para a uniformização, de que já falámos. Olhemos para nós, media, tanto ou mais do que olhamos para os outros constrangimentos à volta, porque a principal responsabilidade pelas falhas é nossa.

“A Guerra Fria nunca acabou”
Carlos Santos Pereira

Como tem acompanhado o conflito na Síria?
A Síria é uma questão complexíssima. E é muito mais complexa à luz dos enquadramentos regionais à volta: as ambições do Irão, o papel da Arábia Saudita. Depois, tem logo ali ao lado o Iraque e a Turquia. A par do conflito interno, que vive deste enquadramento todo. E há ainda os jogos estratégicos das grandes potências, Rússia e EUA, a mostrar aquilo que sempre disse: a Guerra Fria nunca acabou. Mudou de técnicas, aguçou novos instrumentos, mas não acabou. Basta assistir ao que se tem passado no mundo.



Qual é o seu olhar sobre os refugiados?
Sou altamente crítico da forma como a Europa tem lidado com este problema. Por omissão e por incoerência. Nunca conseguiu definir uma estratégia clara. Há mais do que indícios de que todo o processo de tráfico de refugiados é subsidiado por elementos externos. E não parece haver grande empenho em esclarecer isso. Nunca se tentou saber exactamente por que é que aquilo funciona, como é que aquilo funciona, de onde é que vem o dinheiro para pagar aos intermediários, quem é que o dá. Por que é que não se aposta no apoio aos países na própria área? Se calhar, a ac- ção devia começar exactamente aí. Há pontos completamente obscuros.

O povo grego merece o Prémio Nobel da Paz pela forma como tem apoiado os refugiados?
Acreditei no sonho europeu e acho que esta Europa, institucional e política, é cada vez mais um desmentido absoluto disso. Questiono-me se, em casos extremos, a União Europeia (UE) não está a ser um dos grandes adversários de todo o ideário e referências éticas e políticas em que assentava o projecto ou se não come- ça a ser até uma adversária da própria democracia. A atitude da UE em relação à Grécia, neste ângulo concreto, é absolutamente inqualificável. É um desmentido absoluto em rela- ção a tudo aquilo com que tínhamos sonhado em relação à Europa. Não sei se os gregos merecem um Prémio Nobel. Agora, é notável que um país com as dificuldades que tem e com tudo o que tem passado assuma aquela carga.

Este modelo de UE é desumano?
Há um problema dramático de legitimidade democrática das instâncias europeias. A Europa não tem 28 membros, mas 29 membros e o 29.º é o mais poderoso de todos: a burocracia. A juntar a todos os pecados políticos, institucionais, gerou-se uma atitude de arrogância e agressividade com os Estados-membros que atravessam mais dificuldades. Em relação à Grécia, foram de uma enorme cobardia política e está a passar-se o mesmo em relação aos refugiados.

E em relação às medidas de austeridade aplicadas a Portugal?
A questão é saber se as opções adoptadas conseguem atingir o equilíbrio financeiro, orçamental e das contas públicas. Instituições internacionais, como o Tribunal de Contas e o FMI, impõem políticas, mesmo depois de reconhecerem que falharam, e ninguém tira consequências daí. Grande parte não se deve a uma questão de racionalidade, mas a razões puramente de ordem ideológica. Mesmo em relação à Grécia, a intenção não era pô- -la na linha nem impor-lhe uma dada prática económica, mas humilhá-la. Pegando em experiências como o Syriza, na Grécia, e o surgimento de movimentos e partidos em Espanha, estão a aparecer novos protagonistas e novas expressões de contestação.

E isso é benéfico para a democracia?
Experiências novas que interpelem, que contestem, que exijam, que imponham o diálogo são sempre bené- ficas para a democracia e para uma Europa entrincheirada num quadro de défice de democraticidade. As ideias fundadoras do projecto europeu – coesão, solidariedade - evoluíram para uma Europa dentro da qual se volta a exercer o velho jogo do equilíbrio de forças clássico da diplomacia, em que a Alemanha e a Inglaterra têm o peso que têm. A Grécia representa um enorme desafio e uma enorme ameaça. E foi particularmente importante a forma como Tsipras se acomodou e acabou por implementar tudo o que a Alemanha queria. Foi o próprio Tsipras a protagonizar essa humilhação. Houve a intenção de tornar este caso num exemplo para que quem queira sonhar com uma alternativa perceba o preço que tem a pagar. A atitude em relação ao novo executivo português não é muito diferente. Bruxelas não tem conseguido disfarçar um claro desconforto perante a mudança política que se deu. O problema das políticas de austeridade não é tanto técnica e económica, mas ideológica.

DESTAQUE
"A extrema direita
já não representa
apenas o folclore
dos rapazes de
blusão de cabedal,
botas da tropa e
cabelo rapado.
Sarkozy
recuperou votos.
É importante
perceber em
que é que isto
se enquadra"

Como analisa o crescimento da extrema direita na Europa?
É alarmante, assustador e preocupante. No caso concreto de França, além da ameaça que representa, consegue influenciar a agenda política. A extrema direita já não representa apenas o folclore dos rapazes de blusão de cabedal, botas da tropa e cabelo rapado. Sarkozy recuperou votos. É importante perceber em que é que isto se enquadra. Não é só um vazio de referências que vivemos e que são terreno fértil para a implantação de radicalismos, mas também o peso político que vão assumindo. Quando se olha para a segunda Guerra Mundial, para o fenómeno do nazismo, para as diversas expressões do fascismo, há uma certa tendência para algum revisionismo histórico. Warren Christopher, na altura secretário de Estado norte-americano, dizia que, no fundo, a Alemanha está a exercer a mesma política que Hitler seguiu. O contexto é outro, mas a política é exactamente a mesma.

Como vê a candidatura de António Guterres a secretário-geral da ONU?
Não tenho simpatia por Guterres. Aquilo a que assistimos muitas vezes é a figuras que têm um percurso político vergonhoso nos seus países a ser recuperadas para altos cargos das relações internacionais. Temos memória curta. Quanto aos méritos dele como alto comissário para os Refugiados, é extremamente fácil aparecer diante dos microfones e das câmaras de televisão e dizer ‘coitadinhos dos refugiados’. Agora, é tuga e viva Portugal! Era porreiro ter Portugal no campeonato da Europa e Guterres secretário-geral da ONU.

Percurso atribulado
Noites sem dormir

Licenciado em História, mestre em História Contemporânea e em Estratégia e doutorando em História, Carlos Santos Pereira, 65 anos, é conhecido pelo seu percurso como repórter destacado em cenários de guerra, ao serviço de diversos media.

Ter sido combatente foi importante para “perceber a perspectiva de quem combate, saber quando fugir e saber esconder-se a tempo”, mas há marcas de conflitos que nunca conseguiu apagar e lhe tiraram o sono noites a fio.

Docente do ensino superior, é autor e co-autor de vários livros e artigos sobre a Rússia, Europa de Leste e balcânica, relações Leste-Oeste e Norte-Sul, Guerra Civil de Espanha, Guerra Colonial e Descolonização.

Está a ultimar uma obra sobre os aspectos internacionais da crise do Kosovo, outra sobre a guerra na Guiné-Bissau e um estudo sobre a queda do antigo “bloco Leste”.