Sociedade

Carreira das Neves: “O coração da Igreja tem de bater de acordo com o mundo que estamos a viver”

18 dez 2013 00:00

Sacerdote e teólogo, Joaquim Carreira das Neves defende que “é urgente” que a Igreja comece a pensar no dossiê do celibatário”.

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Maria Anabela Silva

Escolheu para título do seu último livro O coração da Igreja tem de bater. Porquê? Está doente?

Não está doente, mas há aqui uma sístole e uma diástole que nem sempre funcionam bem. Com o novo Papa, as coisas começam a funcionar melhor. Ao longo dos séculos, a Igreja sofreu muito e, ao mesmo tempo, fez padecer.

A Igreja é uma instituição muito complicada. O Vaticano II olhou para fora, mas a Igreja continuou agarrada a um sistema muito dogmático, assente no direito canónico. Essa Igreja está um pouco paralisada neste mundo de hoje.

No momento actual, a Igreja vê-se atrapalhada nas questões da fé e da ciência e de uma dogmática que tem a ver com os costumes, a civilização e os valores. Há ainda a falta de vocações religiosas.

As congregações e o clero secular estão a definhar por causa dos pecados da Igreja, pecados de pedofilia e pecados de uma Igreja pouco aberta à realidade do mundo de hoje. O coração da Igreja tem de bater de acordo com o mundo que estamos a viver.

Disse que a Igreja sofreu, mas também fez sofrer. Quais foram, nas últimas décadas, os maiores pecados da Igreja?

Não tivemos os pecados cometidos na Idade Média, com as guerras santas e a Inquisição, que foi o grande pecado da Igreja. Mas tivemos outras nódoas, como as guerras em relação a protestantes, ortodoxos, otomanos, islâmicos, etc.

Um dos grande pecados da Igreja foi o pecado de transformar a fé em ideologia da verdade, fazer-se autora e senhora da verdade absoluta, prefigurando-se como ideologia.

No seu livro defende que as igrejas “ficam anquilosadas se não acompanharem o diálogo com a sociedade, com a humanidade e com as ideias filosóficas, políticas e sociais da actual condição humana”. É isso que está acontecer na Igreja?

Com este Papa, a Igreja está a abrir-se. A Igreja do Papa João Paulo II foi muito bem organizada, mas um pouco militarizada, talvez pela influência das suas origens [Polónia]. Pensava que resolveria os problemas da Humanidade a partir de um sistema religioso, que era o da Igreja Católica.

Para ele, a verdade residia essencialmente na Igreja Católica apostólica e romana, embora abrindo o diálogo a outras igrejas. Fixou um direito canónico e um catecismo muito rígidos. Bento XVI abriu bastante mais a Igreja, mas, como alemão e grande teólogo que é, também se agarrou a uma Igreja voltada para si própria e para a sua identidade.

O Papa Francisco está a abrir o coração da Igreja e a fazê-lo bater, porque vai ao encontro das pessoas. Diz o que faz e faz o que diz. Precisamos de homens assim. Está a marcar o mundo, crentes e não crentes. Com este Papa, o coração da Igreja está a bater de forma bastante diferente de outros pontificados.

É o Papa que a Igreja estava a precisar?

Sem dúvida. É um grande dom de Deus para este mundo conflituoso em que vivemos.

O que mais o tem surpreendido no novo Papa?

O que mais me surpreende é a sua simplicidade. É um pouco Cristo ou São Francisco na terra, uma pessoa cheia de verdade interior. Vive em liberdade absoluta, ao passo que João Paulo II e Bento XVI carregavam sobre as costas a sua doutrina, o seu passado e a sua história.

Este Papa não carrega um dogma, que estrangula. Está a revelar-se um homem completamente livre, feliz e liberto para as pessoas. O que mais me fascina é a liberdade que tem diante da sua fé, uma fé que o transporta para uma revolução feita por dentro e não por legislação.

Qual a reforma mais urgente que a Igreja necessita?

É a reforma da cúria romana. Vivi três anos em Roma e andei muito pelo Vaticano. Fiquei um pouco escandalizado com o que ali se passava. Só tive conhecimento da homossexualidade no Vaticano. Estávamos em 1962/64.

A questão da homossexualidade, que tem uma carga tremenda na bíblia, tem sido mal colocada. Os homossexuais eram condenados no antigo e no novo testamento e foram- -no ao longo dos tempos, até aos dias de hoje. É uma questão que tem de ser vista numa perspectiva da ciência.

A Igreja tem a liberdade de ter leis próprias que digam aos candidatos a sacerdotes, que tenham tendências homossexuais, para não serem ordenados, para que o sacerdote esteja completamente liberto para homens e mulheres. É um problema complexo, que tem de ser tratado.

E parece-lhe que este Papa está aberto ao assunto?

Sim, completamente. Além do lobbie gay, dentro da cúria há também o lobbie do dinheiro, associado ao Banco do Vaticano. Há umas nódoas, que é preciso limpar. Onde há homens e mulheres há problemas e o padre não está isento disso. O mundo da perfeição não existe.

O problema fundamental da Igreja reside na cúria, mas está presente em todos nós. Cada paróquia e cada diocese são pequenas comunidades constituídas por homens e mulheres imperfeitas.

A Igreja precisa continuamente de um baptismo, de um banho que nos vai limpando. Este Papa é o homem que, com o seu exemplo e a sua virtude, veio limpar e fazer com que a Igreja respire a dois pulmões.

Na sua exortação apostólica, o documento que servirá de guia ao pontificado, o Papa Francisco reconhece a importância da mulher na sociedade e na Igreja, mas rejeita a ordenação sacerdotal de mulheres.

Para chegar às mulheres, ainda temos de passar pelos homens e pela possibilidade de haver padres casados, também para resolver o problema das vocações, que não é exclusivo dos católicos. Os protestantes ainda estão piores que nós. O problema essencial é o da não fé

. No mundo de hoje falta saber ou querer pensar, saber o que sou, de onde venho e o que estou aqui a fazer. A felicidade passa apenas pela superfície. Vivemos à superfície das ondas e não vamos ao fundo do mar. Vão passar dois ou três Papas, mas, mais tarde ou mais cedo, as mulheres poderão ser sacerdotisas.

É uma questão cultural?

É. Temos de ir à pessoa de Jesus e aos apóstolos, que não andavam com as suas mulheres. Pelos evangelhos sabemos que dos 12 apóstolos apenas um – São Pedro – tinha uma sogra, mas não falam da sua mulher ou se tinha filhos. Os apóstolos são exemplo de discípulos sem mulher e sem filhos, que vão atrás de Jesus.

Pessoalmente, penso que seriam casados e com filhos. No milagre da multiplicação dos pães e do peixe, os evangelhos referem que Jesus deu de comer a duas mil pessoas, “sem contar mulheres nem crianças”.

A cultura em que os evangelhos foram escritos era completamente masculinizada. Naquele tempo a mulher não contava. Essa cultura está ultrapassada. Temos de ler os evangelhos à luz da cultura dos nossos tempos, em que mulheres e homens têm os mesmos direitos. Por que razão não hão-de existir mulheres sacerdotisas? Para mim, é um problema cultural. João Paulo II dizia que não é uma questão de cultura, mas de história. E onde está a história sem cultura?

Em relação ao celibato, acredita numa mudança no médio prazo?

É um problema que está em arquivo. Temos de tirar os arquivos cá para fora. A vocação não é ser celibatário ou não. É vocação. É urgente a Igreja começar a pensar no dossier do celibato.

Como será a relação do Papa Francisco com Fátima?

Ele é latino. Os pais eram italianos e viveu grande parte da sua vida na América Latina (Argentina). Tem uma profundidade de latino e, como tal, é um homem da devoção. Para ele, as procissões e outras manifestações de devoção são importantes, ao contrário de Bento XVI.

O novo Papa é muito mariano e muito devoto de Fátima e de Nossa Senhora. Fátima tem problemas de ordem teológica. Sou o primeiro a tê-los, mas acredito em Fátima. Dou jus ao mistério de Fátima, porque na minha vida tive aquilo que podemos chamar 'milagres de Fátima'. Não é apenas não ter pernas e andar, estar cego e voltar a ver.

Há outro tipo de milagres. Conheço pessoas que, na sua fé em Fátima, são autênticos mistérios de vida. Alguma coisa se passou em Fátima. Como é que as coisas aconteceram ou acontecem... isso entra dentro do mistério de Deus e de Nossa Senhora.

Nas últimas décadas têm-se assistido ao crescimento de novos movimentos religiosos. Só no mundo cristão existem mais de 170 mil congregações neopentecospais. Como explica esse florescimento?

Nos séculos XVIII e XIX, os missionários católicas e protestantes que foram da Irlanda e da Inglaterra para a América, encontraram a América da liberdade. Não tinham uma hierarquia, um papa. Tinham apenas a bíblia, que cada um interpretava à sua maneira, fundando uma religião. Isto ainda hoje acontece.

Todos os dias nascem e morrem igrejas evangélicas na América. Tinha um amigo muito rico que queria fundar uma igreja à sua maneira e eu seria o 'papa' dessa igreja. Claro que não o apoiei.

Por que é que esses movimentos têm tanta adesão?

Os evangélicos vão ao coração das pessoas, não vão ao dogma, ao direito canónico ou a uma identidade. Têm uma pastoral mais directa, que toca as pessoas. A Igreja não tem este contacto directo. Este Papa é diferente nesse aspecto. Manda parar o papa-móvel para abraçar as pessoas, não está fechado no palácio.Este contacto directo, à maneira católica, tem de se fazer.

Estarão os outros agentes da Igreja abertos a esse tipo de pastoral?

A Igreja vai padecer um pouco. É óbvio que nem todos os bispos, cardeais ou sacerdotes serão 'papas Francisco'. Cada um tem a sua cultura e personalidade. Deve haver muitos bispos a interrogarem-se sobre o que vão fazer.

Temos uma igreja ainda muito anquilosada. Veja-se a atitude que este Papa teve com o bispo alemão que vivia de forma ostentadora. A situação não era de agora, mas nenhum outro Papa o chamou a atenção. O que fez o Papa Francisco é de uma força tremenda.

O Papa lança em cima de cada bispo um desafio tremendo. Se o coração do Papa bate daquela maneira, o meu também deve bater ao mesmo ritmo.

No seminário lia romances e Marx, às escondidas, debaixo dos lençóis

Se não fosse padre, o que seria? Médico, como o seu pai queria?

Talvez jornalista. O meu pai gostava de ter tido um filho médico. Acho que todos os pais gostariam. Sou um homem de letras, não das ciências. Mas só despertei para as letras a partir da Filosofia.

No meu tempo de seminário, em Leiria, já comprava e lia romances, por vezes, às escondidas debaixo dos lençóis, para o padre responsável não ver. Também lia Karl Marx. Foi nesses tempos que despertei para a literatura, para a filosofia e para a poesia. Escrevi muita poesia, mas queimei-a toda.

Porquê?

Por causa de um superior. Leu umas coisas que escrevi em poesia e começou a duvidar da minha vocação para o sacerdócio. Queimei tudo. Só voltei a escrever poesia quando estive em Roma e fi-lo em italiano.

Durante o seu percurso vocacional chegou a ter dúvidas?

Gostei muito de uma rapariga da terra [Souto, Caranguejeira], quando tinha 17 anos. Mas foi passageiro. Nunca tive uma crise fundamental. Desde criança que tinha a obsessão de ser missionário como o meu tio, que era franciscano e que esteve na Guiné e em Moçambique.

Quando fui estudar para Roma, fui com a ideia de seguir depois para África. Mas, para substituir um professor do Seminário [da Luz] que foi ordenado bispo, mandaram-me para Jerusalém estudar sagradas escrituras, uma área pela qual me apaixonei por causa da literatura da bíblia.

No seu livro conta que, em criança, chegou a roubar bacalhau e outras coisas da loja do seu pai para dar a alguns vizinhos pobres.

Tinha oito ou nove anos. Durante a guerra civil de Espanha, o meu pai fazia 'candonga' de bacalhau. Esse conflito teve um influência económica terrível em Portugal. Nas aldeias era ainda mais complicado.

O meu pai tinha propriedades, uma pequena loja e uma boa adega... Para aquele tempo, éramos ricos. Tínhamos uma vizinha, a ‘ti’ Guilhermina, de quem eu gostava muito. Ela estava doente e passava mal. Fui roubar várias vezes para lhe dar.

Uma ocasião o meu pai apanhou-me e bateu-me. Mas, quando lhe expliquei o motivo, pediu-me perdão e disse-me que, da próxima vez que a ‘ti’ Guilhermina tivesse fome, para lhe pedir que ele dava. Sofria com o sofrimento dos pobres.

A doença reforçou a sua fé?

Já passei por sete operações, algumas graves e uma delas cancerosa. Há cerca de 30 anos, sofri de mielite transversa, que me deixou paralítico vários meses. O médico chegou a dizer-me que não voltaria a andar, mas, graças aos tratamentos de fisioterapia, recuperei. Vieram outras dificuldades.

Procuro tirar partido das minhas doenças e dificuldades. Sou um homem de fé, um crítico de fé. Quando somos teólogos e gostamos das humanidades, das letras, das artes e da cultura em geral, interrogamo- -nos sempre sobre o eterno problema do bem e do mal. Há muito bem, mas também existe muito mal. Por vezes, é mais o Caim do que o Abel.

Isso coloca problemas à fé?

Sim, mas eu sei que Deus está acima disso tudo. Não estou agarrado ao Deus do antigamente, que era a causa de todo o bem e de todo o mal. Para mim, o Deus castigador está ultrapassado, porque leio a sagrada escritura e a história com sentido crítico.

Agarro-me às coisas boas, como a cultura literária, onde, além da bíblia, incluo os grandes romances. E temos romances excepcionais. Agora, estou a ler muito Agustina Bessa Luís. Uma das minhas satisfações é ler boa literatura, boa poesia e bons romances, mas também ir a um bom teatro ou ver um bom filme, e tirar lições daí.

Tiro partido do bem que há no mundo. Não nos podemos agarrar ao mal, mas devemos fazer da nossa vida uma maturação do bem. Com a minha doença, agarro-me mais ao essencial e menos ao acidental. E encontro o essencial em tudo o que é verdadeiramente cultura. Nesta sociedade moderna, de visibilidade e de vaidade, agarramo-nos mais ao acidental.

“Tenho uma certa atracção pelo BE, mas ninguém sabe o que aquilo é”

É neto de maçon e filho de alguém “muito salazarista”. Há algum partido político com o qual se identifique?

Já votei PS, PSD e penso que, numas autárquicas, votei CDS-PP. Ando entre o PS e o PSD, no chamando arco da governação. Tenho amigos comunistas, que, como pessoas são excepcionais, mas, como seguidores de uma ideologia, são colectivistas.

Em 1975, ouvi Álvaro Cunhal dizer que enquanto ele tivesse influência em Portugal, não deixaria que o País se tornasse numa democracia representativa. Para mim, as democracias representativas são o ideal.

O capitalismo é passível de transformações, mas o PCP não é passível de transformações. Nunca votei PCP. Tenho uma certa atracção pelo BE, mas ninguém sabe o que aquilo é. Sabemos que é contra. Contra o capitalismo, contra a América, contra a banca... Mas, é escusado. Não passamos sem os bancos.

No seu livro diz que é preciso “catequese política em universidades político-partidárias”. O que deveria ser ensinado nessas 'universidades'?

A doutrina social da Igreja não nasceu com o Papa Francisco. Vem já do século passado. Temos universidades católicas que ensinam capitalismo, porque somos invadidos pelo capitalismo ocidental e agora até pelo capitalismo chinês.

O capitalismo é qualquer coisa de incógnito, de misterioso. O grande capital não tem rosto humano. É preciso que se ensine nas universidades, nomeadamente nas católicas, que tem de haver capitalismo, mas com rosto humano e com personalidade.

Qual o principal 'ensinamento' que os líderes de hoje deviam retirar do exemplo de Nelson Mandela?

Compaixão. Quando estive em Moçambique a dar aulas, passei por Joanesburgo e a imagem que tenho do apartheid é terrível. Lembro-me de estar sentado, com outros colegas franciscanos, a ler o jornal.

Convidava os negros para se sentarem ao meu lado, mas diziam-me que era proibido. Isso dava cabo do mim. Mandela teve 27 anos na prisão, mas saiu sem ódio, mesmo sabendo que o apartheid estava a matar os seus irmãos pretos. Ele olhava a pessoa como pessoa. Nem todos compreendiam a sua compaixão, mesmo aos seus companheiros.

Temos de apreender a democracia através deste homem. Não sei qual era a sua relação com Deus, mas, para mim, é o exemplo de um cristão autêntico.