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Ceci n'est pas une photografie*

11 jun 2016 00:00

A Arquivo Livraria, em Leiria, criou uma parceria com a Lomography Embassy Shop, destinada a servir os amantes da lomografia e fotografia analógica.

(Fotografia: Bruno Luís)
(Fotografia:Hugo Ferreira)
(Fotografia:Hugo Ferreira)
(Fotografia:Hugo Ferreira)
(Fotografia:Hugo Ferreira)
(Fotografia:Hugo Ferreira)
(Fotografia:Hugo Ferreira)
(Fotografia:Hugo Ferreira)
(Fotografia:Hugo Ferreira)
(Fotografia:Hugo Ferreira)
Jacinto Silva Duro

A Arquivo Livraria, em Leiria, desde o fim de Maio, é representante da Lomo, através de uma parceria com a Lomography Embassy Shop. Os amantes da lomografia da região ganharam um local onde podem comprar rolos fotográficos, pedir revelações, impressões e digitalizações, comprar máquinas “lomográficas” e participar em oficinas e saídas lomográficas, orientadas por um formador. Se ainda não conhece a arte da lomografia, nós passamos a explicar no que consiste, lançando mão de uma comparação.

O pintor surrealista belga René Magritte criou, em 1929, uma obra, considerada um ícone da arte moderna, na qual uma imagem é acompanhada da descrição “ceci n'est pas une pipe” - em português: “isto não é um cachimbo”. De uma assentada, Magritte dizia que aquilo que estamos a ver, não é o que pensamos estar a ver. De certo modo e ressalvadas as distâncias, uma lomografia, não é uma fotografia - ceci n'est pas une photografie*.

É certo que partilham praticamente todas as técnicas, mas a principal premissa da lomografia é mesmo a violação de muitas das regras e ritmos estabelecidos para a arte de captar e fixar imagens em película. Dito isto, as duplas, triplas ou quádruplas exposições são quase obrigatórias, tal como o é misturar diferentes temas e imagens no mesmo fotograma, usar lentes diferentes, coloridas, olho de peixe, pinhole, fita isoladora – sim, a lomografia pode envolver alguma bricolage, processo cruzado – lomografar com rolo de slide e revelar com técnica de fotografia, entre muitas outras técnicas.

O lomógrafo usa uma câmara automática, normalmente da marca Lomo, capaz de registar cor e movimento, mas prescinde da utilização do flashe abusa nas longas aberturas de diafragma e exposições compridas, como forma de quebrar a fronteira das representações da realidade. A fotografia é capaz de nos mostrar a realidade como ela é, porém, a lomografia rompe fronteiras e mostra-nos uma visão quase esquizofrénica e muitas vezes bipolar daquilo que está sob a objectiva do observador.

Também não ajuda muito a representação da realidade “como ela é”, o facto de os lomógrafos preferirem usar rolos fotográficos que há muito passaram da validade, na esperança de que, na melhor das hipóteses, as cores da emulsão que cobre a película se misturem e criem efeitos cromáticos inesperados. Na pior das hipóteses, a imagem pode nem sequer aparecer. Mas o risco e a aleatoriedade fazem parte da lomografia. Muitas vezes, para se obter o melhor resultado e cores variadas, que podem ir do amarelo, ao verde, dando um salto ao vermelho e azul, usam-se rolos de slide e fotográficos de diferentes marcas.

Com a abertura da representação da Lomo, em Leiria, Pedro Viterbo, proprietário da Lomo graphy Embassy Shop, explica que com a parceria se pretende chegar a uma região onde existem muitos entusiastas da fotografia analógica e lomografia. “É uma região central estratégica importante para nós”, garante. Quebrar regras Hugo Pereira, que já deu pelo alter-ego lomográfico de Zulupt, vai ser o formador residente de lomografia na Arquivo Livraria. Cresceu com a fotografia analógica muito presente no seio familiar. As tias tiravam muitas fotografias com máquinas "normais" de plástico ou com Polaroid e sempre admirou a forma descontraída como o faziam. Registavam todos os bons momentos, imprimiam e faziam álbuns.

“Era normal nas noites em que a família jantava junta, irmos todos para o sofá folhear os álbuns”, recorda. A chegada do formato digital fê-lo sentir que não se encaixava em lado algum, até que, em 2000. leu um artigo sobre uma máquina Lomo e pesquisou o assunto. “Senti que havia um lugar para o género de fotografia que fazia. Em 2005, comprei a minha primeira Lomo e a partir dai nunca mais parei”, conta. Hoje, as suas máquinas favoritas são a LC-A, a Lubitel 166+ e uma Canon A1. Zulupt enumera as características que diferenciam uma lomografia de uma fotografia: “a descontracção, a utilização de técnicas clássicas ou a experimentação de novas técnicas”, para atingir determinado aspecto.

“O quebrar as regras, fazer algo de novo, para mim, é uma evolução constante da fotografia em vez de nós cingirmos ao tradicional e as regras.” Será que aquilo que, normalmente, seria considerado uma fotografia "estragada", devido às duplas exposições ou luz excessiva, para um lomógrafo pode ser uma preciosidade? Sim e não. Hugo Pereira diz que, muitas vezes, uma fotografia estragada continua a ser fotografia estragada. “Antigamente faziam-se duplas exposições sem querer, muitas vezes ficavam mal mas, por vezes ficavam surpreendentemente boas.

É o apurar do erro até deixar de o ser.” Bruno Luís, dono do alter ego lomográfico Sprofishgel, explica que a lomografia é uma representação mais artística da realidade. “Permite uma liberdade tremenda. Pode-se lomografar, procurando atingir objectivos finais de imagem, idealizada na nossa cabeça, ou sem pensar - uma das regras básicas da lomografia e esperar pelo resultado. Tanto de uma maneira, como da outra, atinge-se uma imperfeição, na maior parte das vezes, no que toca à clarividência da imagem final. Muitas vezes, não se sabe bem o que ali está à frente, e é preciso analisar atentamente o conteúdo.”

Isto é, a lomografia permite a alternância de realidades paralelas. Uma fotografia é uma representação aproximada da realidade com o fotojornalismo a ser um dos expoentes máximos mas a lomografia é uma representação de uma realidade. Uma de várias. “Por exemplo, posso tirar um rolo na cidade num dia. No dia seguinte, posso utilizar o mesmo rolo, num ambiente mais campestre ou em praias e fazer duplas exposições”, diz Bruno Luís que, por estes dias, não sai de casa sem a sua LC-A+ RL (35mm): compacta, leve, e semi-automática; é com ela que abraça o grande desafio da lomografia: conjugar diferentes realidades e ver até que ponto as duas encaixam 

Embora a história da fotografia, a arte de fixar imagens num suporte, através de pigmentos e luz, quase se perca nas areias dos tempos, a da lomografia é relativamente recente e coincide com um dos períodos mais críticos da Guerra Fria que opôs o Ocidente capitalista ao Bloco de Leste comunista.Em 1982, o general Igor Petrowitsch Kornitzky, do Ministério da Indústria e Defesa soviético, ordenou ao director da empresa de fabrico de câmaras fotográficas Lomo, Michael Pantiloff, a produção maciça de máquinas “pequenas, robustas e fáceis de usar”.

Na base da ordem deste general amante da fotografia, estava uma pequena máquina japonesa que levou Kornitzky a sonhar com Lomos baratas que permitissem às famílias da URSS documentarem o seu estilo de vida. A Lomo Kompakt Automat– ou LCA –, de 35 mm, foi um sucesso, sendo comercializada também no Vietname, em Cuba e no Leste europeu. E foi a exportação para os países da Cortina de Ferro que levou ao aparecimento da loucura pelas Lomo.

Em 1991, dois jovens turistas austríacos de férias na então Checoslováquia “tropeçaram” nas baratas LCA (as Lomo originais, hoje, valem pequenas fortunas) e, de repente, tudo se tornou motivo para fotografar. Regressados a casa, os jovens apresentaram as máquinas e o conceito aos amigos e conhecidos. Com o Muro de Berlim e o Bloco Soviético a desmoronar-se, tudo o que vinha do Leste tornou-se moda. Em 1995, nasceu em Viena, na Áustria, a Sociedade Lomográfica que promoveu as vendas de Lomos no âmbito de diversos eventos culturais, afirmando o valor artístico da lomografia, no momento em que a fábrica de Leninegrado (hoje, São Petersburgo) que produzia as Lomo.

Actualmente, o fenómeno conta com praticantes em todos os cantos do Mundo e tem sido objecto de várias exposições, concursos, oficinas, livros e revistas. Graças a grupos de amigos e a associações culturais como a ecO, de Leiria, onde Hugo Pereira reuniu uma pequena legião de fãs, a lomografia a região conta com várias dezenas de praticantes de lomografia. Aliás, as pequenas máquinas lomográficas de plástico, com o seu conjunto sortido de lentes que permitem fazer muitos efeitos, são uma prenda muito apreciada.

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