Viver
Coisa Nossa: a Meia Lua da antiga pastelaria Saraiva
Um clássico com décadas que sobrevive num pequeno estabelecimento na Marinha Grande
Um pequeno bolo, numa pequena pastelaria, algures na Marinha Grande, também tem direito a lugar de destaque. Mesmo que o destaque seja só o fundo de uma página de jornal. Nem todas as maravilhas são eleitas, ou derrotadas, em campanhas de marketing com fato de gala e directos televisivos, pelo contrário, é a devoção ao longo de décadas que define um autêntico clássico. E os doces são como os gostos – não se discutem nem se votam em chamadas de valor acrescentado.
Manhã, como outra qualquer. Na padaria e pastelaria Delícia do Marquês ninguém sabe precisar com rigor a origem da Meia Lua, o bolo que, ali, nunca falta na vitrina. Nem mesmo o actual proprietário, que comprou a antiga pastelaria Saraiva e lhe mudou o nome, em 1998, quando regressou de França. Manuel da Fonte mora em Pombal e todos os dias faz 50 quilómetros para cada lado, no balanço entre casa e trabalho. Sabe, no entanto, que o negócio já vem da década de 60 ou 70 do século passado. Quando o recebeu, também recebeu funcionários e receitas. Incluindo, a tradição da Meia Lua, que “já se fabricava há muito ano”.
O discreto número 8 da Rua António Lopes de Almeida é o ponto de encontro de gente que trabalha no centro da Marinha Grande, a zona mais antiga da cidade, muito perto da câmara municipal, dos museus, do Teatro Stephens, das antigas instalações da real fábrica de vidros. E da igreja matriz de Nossa Senhora do Rosário. Que também ajuda o forno a funcionar e alimenta a caixa registadora, em especial, “nos dias de festa e missas”, adianta Manuel da Fonte. Além de patrão, é o padeiro de serviço, apoiado por dois pasteleiros.
Os clientes da Delícia do Marquês são, sobretudo, empregados do comércio e pessoas que procuram as lojas e serviços nas imediações. Ali não há mobiliário Ikea nem design contemporâneo. Vale a oferta, em que são obrigatórios pastéis, bolas de Berlim, palmiers, rins, mil-folhas, miniaturas, bolos secos e bolos de aniversário, baptizado e casamento, ao lado do pão quente: bolinhas, pão d'avó, centeio, integral e pão de forma. Todos os dias, incluindo sábados, domingos e feriados.
Quanto à Meia Lua, as aparências não iludem, mas é o interior que faz a diferença, como nuvem de conforto entre duas metades de prazer. A empreitada não é para levar de ânimo leve, nem é, provavelmente, para todos os gostos. Requer afinco, vontade e genuína gula. Só assim a satisfação está garantida até ao último grama de pecado.
“É uma característica desta pastelaria. Do que sei, na zona, foi aqui que começou a ser feita”, explica Paulo Domingues, pasteleiro, há oito anos na Delícia do Marquês. É ele que revela o triângulo em que tudo acontece: base de massa folhada, recheio de creme de manteiga e cobertura em glacé de açúcar.
Os derradeiros ingredientes só dependem de quem prova: tempo e silêncio.