Viver
Conhecer “um príncipe do Renascimento”
Jorge Estrela: os cogumelos, as jantaradas e a pintura numa exposição que inaugura esta segunda-feira no Museu de Leiria
Ainda hoje, a investigadora Inês Thomas Almeida se inspira nas conversas com o tio Jorge Estrela na residência “forrada de livros”, em Lisboa, onde aconteciam “lendárias refeições de cogumelos”.
A gastronomia, os vinhos e a micologia encantavam o intelectual, pintor e historiador de arte com espírito de “bon vivant”, que “promovia o contacto” entre amigos e familiares em “grandes jantaradas” e “tinha gosto” de ver “a casa sempre cheia”.
Em Leiria, recolhia-se na Quinta da Carvalha, frequentava regularmente o bar Opus e o restaurante O Fantasma da Ópera e entregava-se a passeios na Natureza. Podia passar a manhã inteira a recolher fungos na serra ou no pinhal.
A vida e a obra do familiar a quem Inês Thomas Almeida chama “um príncipe do Renascimento” são o tema da exposição Jorge Estrela – Esboço de uma Biografia, a inaugurar esta segunda-feira, 13 de Junho, pelas 19 horas, no Museu de Leiria, instituição a que está para sempre ligado pelo contributo para o estudo, restauro e classificação da colecção de pintura antiga.
As raízes de Jorge Estrela em Leiria remontam ao trisavô, o primeiro Barão do Salgueiro, proprietário do palacete no Terreiro de onde o escritor Eça de Queirós foi expulso numa noite de baile de carnaval e que o rei D. Luís I também conheceu – o serviço de mesa comprado especialmente pela família para receber o monarca integra a exposição que vai estar patente no Museu de Leiria até 2023, com coordenação técnica de Vânia Carvalho, coordenação executiva de Sara Marques da Cruz, consultoria de Carlota Simões (viúva de Jorge Estrela) e Vítor Serrão e museologia de Ricardo Estevam Pereira.
O jardim da Almuinha, na Nova Leiria, baseia-se no projecto Um jardim segundo Rodrigues Lobo, de Jorge Estrela, que explora a descrição da paisagem pelo poeta do século XVI.
Filho do filósofo e professor Fernando Pinho de Almeida, nasceu em 1944 e morreu em 2015. Pintor, historiador de arte, fundador e presidente da Sociedade Portuguesa de Micologia, autor de banda desenhada e colaborador em desenhos animados, ilustrador, especialista em desenho científico, designer gráfico, criador de jogos de tabuleiro, investigador da paisagem, da botânica, do urbanismo e do vinho e da vinha, cronista, autor de contos e poemas, responsável, com o pseudónimo X.Zacto, por publicações como Estalinoburguer ou Portugal Hiperbólico, Jorge Estrela dirigiu, por indicação de Mário Soares, de quem era amigo, a Casa-Museu João Soares, nas Cortes, com exposições como Leiria no Tempo das Invasões Francesas, Korrodi e o Restauro do Castelo de Leiria, Os Grafitos Medievais do Mosteiro da Batalha e Viagem de Cosme III de Médicis em Portugal no ano de 1669.
“Uma pessoa fora do comum, com um brilhantismo ímpar”, que cultivava “o amor incondicional ao conhecimento”, enquanto mantinha um perfil “muito generoso” e “uma atitude muito nobre” de partilhar o que sabia com quem o rodeava, comenta Inês Thomas Almeida.
A defesa de Leiria
Após o 25 de Abril e o regresso do exílio entre 1966 e 1975 em Paris, onde concluiu o mestrado em História da Arte na Sorbonne, Jorge Estrela dedicou-se ao levantamento de fotografias de Leiria do período entre 1870 e 1950 e organizou a exposição O Saque da Cidade de Leiria, apresentada em 1977. Rui Ribeiro colaborou na iniciativa e recorda um homem “muito à frente do tempo”, com um pensamento “bastante crítico em relação ao modelo de desenvolvimento urbano” e preocupações, hoje comuns, de defesa do ambiente e do património.
Opôs-se à demolição do Mercado de Sant'Ana e ganhou, também com Rui Ribeiro, o concurso público para a sua reconversão, além de argumentar a favor da pedonalização da Praça Rodrigues Lobo, que veio a concretizar-se, assinala o arquitecto, apesar da “reacção quase violenta” de alguns comerciantes.
Talvez o maior contributo de Jorge Estrela como historiador de arte seja a atribuição, pela primeira vez, a Baltasar Gomes Figueira, da autoria de vários quadros até então relacionados com a filha, Josefa de Óbidos.
Já a colecção de pintura antiga do Museu de Leiria, constituída sobretudo por pintura religiosa, proveniente de conventos, igrejas e do paço episcopal, “foi salva graças à intervenção dele”, diz Ricardo Estevam Pereira. “Em muitos aspectos não se sabia o que lá estava, mas, acima de tudo, há uns anos atrás, estaríamos a ver telas completamente castanhas, algumas rotas, cheias de pó, sujas, e ele conseguiu mostrar como era importante restaurar esta colecção, estudar esta colecção, expô-la, devolvê-la à cidade, publicar um catálogo”.
O museólogo acredita que “a grande surpresa” da exposição são, no entanto, os quadros de Jorge Estrela – psicadélicos, coloridos, a expressar a pop art, o Maio de 68 e a música dos Beatles.
Logo à entrada, em grande destaque, Homem Perdendo a Paisagem por um Fio é considerado autobiográfico e simbólico da vontade de não abandonar os interesses e as raízes.
O circuito expositivo segue depois através de fotografias e cartas pessoais, entrevistas em vídeo com quem o conheceu melhor, rótulos que criou para vinhos da região e jogos de tabuleiro que inventou ou adaptou, entre muitos outros elementos que mostram como todas as facetas de Jorge Estrela se interligavam no fomento de uma cultura multidisciplinar.
Um legado por explorar
Praticava o sentido de humor, mas não suportava conversas fúteis. Ao olhar de pintor, aliava um olhar de cientista e uma biblioteca com milhares de exemplares. Dedicava-se ao detalhe e ao exame em profundidade, o que provavelmente explica que tenha descoberto desenhos do jogo do alquerque durante o processo de identificação dos grafitos do Mosteiro da Batalha.
Ao mesmo tempo, vivia fora da academia. “Das lições mais importantes que ele nos pode dar como homem de cultura é que a cultura tem de ser natural, tem de ser uma coisa fluída que faz parte da nossa vida”, sublinha Ricardo Estevam Pereira. Perfeccionista, raramente publicava obra científica, apesar da insistência dos amigos, o que leva o museólogo a acreditar que “existirão muitas surpresas nas gavetas”.
Parte do arquivo de Jorge Estrela mantido pela família já se encontra digitalizado pelo Museu de Leiria. A acompanhar a exposição que inaugura esta segunda-feira, está previsto o lançamento de um catálogo e de um site.