Sociedade

Crimes com crianças são os que mais chocam inspectores

25 mar 2016 00:00

Apesar de Portugal não ter um taxa elevada de homicídios, nos últimos meses ocorreram diversos crimes de contornos macabros que chocaram a população. Na região de Leiria, ao longo das últimas décadas também aconteceram alguns, continuando na mem

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Diamantino Carvalho, inspector-chefe aposentado, era estagiário. Estava há seis meses na Polícia Judiciária (PJ) de Coimbra quando recebeu uma chamada da GNR a informar que estavam alguns corpos na praia do Osso da Baleia, no concelho de Pombal. Estávamos no dia 1 de Março de 1987. Ele e o colega, outro estagiário, correram para o local, enquanto os restantes inspectores seriam contactados para casa. “Não havia telemóveis”, explica.

Chegados ao local “havia uma confusão de gente” com várias autoridades. “Naquele tempo não havia os cuidados que há hoje na preservação de indícios e do local do crime. Vimos os corpos e junto ao de uma mulher estava um papel que dizia: 'Foste tu que quiseste. Os outros foram por arrastamento”, adianta Diamantino Carvalho. Apesar do cenário ter “contornos de filme de terror”, este inspector diz que a “adrenalina” de estagiário impediu que ficasse abalado com o que viu. Foram sobretudo os crimes com crianças ou idosos indefesos que o revoltaram no futuro. “Por dentro ficava enraivecido.”

Foi precisamente por envolver crianças que um crime em Ourém ainda hoje está bem presente na memória de um dos inspectores ligado aos homicídios. Foi há 20 anos, quando um jovem matou um casal e os seus dois filhos numa moradia, na Quinta da Granja, no Olival. “Foi o crime que mais me marcou pela frieza de ânimo, sem sentimentos”, diz este investigador, recordando que uma das vítimas – uma criança com 2 anos – tinha a idade do filho. “Não consigo dissociar o cenário tão brutal de um crime tão fútil. É o típico homicídio de circunstância”, em que o agressor foi para roubar e “uma precipitação acabou num descalabro”.

Encarar um cenário de morte não é fácil. “Estamos a mexer num cadáver, a visionar e a cheirar. Há 15 anos nesta área já encaro como trabalho, mas há situações que nos tocam, sobretudo, quando envolvem crianças”, refere o mesmo investigador, garantindo que “ninguém fica indiferente”. “É revoltante”.

Os inspectores das brigadas dos homicídios da PJ lidam de perto com cenários “brutais”. Apesar da experiência os ajudar a “criar uma certa carapaça”, estes homens e mulheres confessam que há crimes que os marcam para sempre. “Tenho noção que me tornei numa pessoa mais fria e insensível, mas não de ferro”, refere outro investigador ligado há vários anos a homicídios, concordando que os crimes que envolvem crianças “são os mais difíceis de investigar”.

Este inspector ainda hoje não esquece dois crimes cujas vítimas eram bebés e os autores os progenitores. “Ambos por envolverem crianças indefesas e aqueles que deveriam cuidar delas serem os homicidas”, justifica, explicando que, “no primeiro caso, o autor dos maus-tratos nem remorsos teve”. No segundo, “a premeditação da mulher em matar a criança a seguir ao parto”. “São situações que ainda hoje recordo e vêm-me muitas vezes à cabeça as imagens dos corpos das crianças.”

Este inspector conta que quando se deparou com estes crimes pensou nos seus filhos. “Não porque pudessem ser eles as vítimas, mas porque tinham uma idade aproximada deles. Na situação do bebé de Alcobaça ainda hoje penso que eles podiam andar juntos na escola. Nestas alturas, quando chego a casa gosto de os abraçar e de brincar com eles, esperando que nunca nada de mal lhe aconteça.”

Não há forma de se preparar para enfrentar um cenário macabro. “As coisas acontecem sem hora marcada. Somos chamados e avançamos. Quando o cenário é complicado respira-se fundo e fazemos o que temos de fazer, tentando ser objectivos e abstraindo-- nos da crueldade da situação”, afirma também este investigador.

A família é normalmente o refúgio, com quem raramente desabafam, pois é também uma forma de “desligar o interruptor”. “Irrita-me, por exemplo, quando chego a casa e toda a gente já viu as notícias e quer saber pormenores. Não falo do assunto. Para manter a minha sanidade tenho de separar as águas.”

Não há crimes perfeitos

As séries policiais têm atraído muitos jovens para a investigação policial e forense, mas na vida real os crimes não são resolvidos à distância de um episódio. Uma investigação envolve vários peritos e muitas horas de trabalho de campo e de laboratório. O objectivo é simples: encontrar provas que identifiquem o autor. “O homicídio é o crime clássico em investigação criminal e o mais abrangente, porque envolve todas as áreas forenses e disciplinas que se complementam”, explica um dos investigadores desta área.

Os primeiros a chegar ao local são os bombeiros e a PSP ou a GNR, consoante a área de intervenção. Ao suspeitarem de um crime de homicídio a PJ é chamada, fazendo-se acompanhar por peritos do Laboratório de Polícia Científica, que se ocupam do tratamento geral dos vestígios, e técnicos do Instituto Nacional de Medicina Legal, que analisam o corpo.

“Há uns anos não havia preocupação em preservar o local do crime. E não só não preservavam, como por vezes contaminavam a cadeia de prova”, salienta Diamantino Carvalho. Esta é uma preocupação prioritária para os investigadores para que “não haja a deturpação dos vestígios”.

Segundo um dos inspectores dos homicídios, há sempre o princípio de Locard, ou seja, “qualquer pessoa que entra num cenário de crime deixa sempre coisas no local e leva sempre alguma coisa”. Por outro lado, a pressa nunca pode estar presente numa investigação. “O local do crime só existe uma vez, logo deve recolher-se o máximo de informação e indícios, leve-se o tempo que for necessário. É preciso procurar.” Depois o investigador deve fazer a “projecção de cenários, sempre com a mente aberta, sem nunca menosprezar outros”.

Segundo este investigador, estes crimes são mais fáceis de investigar do que o tráfico de droga, por exemplo. “Por norma são mais parametrizados, mais by the book.” Diamantino Carvalho frisa que “o crime perfeito não existe, há é a incompetência da polícia”. O seu colega acrescenta que pode também “faltar sorte por várias circunstâncias”.

No entanto, Diamantino Carvalho admite que há crimes mais complicados de investigar, como o abuso sexual, que até pode ter existido e não ser possível provar, “porque além da prova física é preciso provar que foi aquela pessoa e não outra”. Este inspector-chefe aposentado defende, todavia, que “mais vale um culpado em liberdade do que um inocente na cadeia”.

Podem não ter sido crimes perfeitos, mas para acusar é preciso provas. Diamantino Carvalho garante que ainda hoje suspeita de quem foi o autor do homicídio de um estrangeiro na praia do Pedrógão. “Mas nunca conseguimos reunir provas.”

 

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