Sociedade

"É a solidão no meio da multidão. Atrás da porta há sempre uma história"

29 mai 2020 20:46

Projecto Velhos Amigos da associação Atlas apoia idosos em situação de isolamento e carência

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Ana Paula Venâncio (à esquerda na foto) e Sílvia Marquês no quarto que Mário Girão habita em Leiria
Ricardo Graça

Ana Paula Venâncio não esquece o dia em que se tornou voluntária no projecto Velhos Amigos da associação Atlas, nem a frase que ouviu da primeira pessoa que visitou, depois de a abraçar: “Como eu gostava que alguém da minha família me desse um abraço assim. E chorou, chorou, chorou”.

Durante todo o período de confinamento, os voluntários da Atlas mantiveram-se no terreno. Continuaram a bater à porta de idosos em situação de carência e isolamento, para deixar refeições quentes, conversa, afecto e esperança. Para serem a muleta, o rosto humano, a voz amiga de quem vive no centro da cidade, mas longe de tudo e de (quase) todos, às vezes até dos próprios filhos.

“É a solidão no meio da multidão. Atrás da porta há sempre uma história”, resume Ana Paula Venâncio.

Mário Girão, 78 anos, um dos beneficiários do projecto Velhos Amigos, dorme num quarto de renda com casa de banho partilhada e cozinha colectiva, em Leiria, onde Sílvia Marquês, outra voluntária da Atlas, entrega os almoços e jantares para o fim-de-semana. “Falamos sobre as coisas actuais, porque ele acompanha muito as notícias, falamos muito sobre a vida dele, no fundo, é reviver, é uma forma de voltar ao que já foi, de esquecer o que a vida é agora”. Sílvia regressa a casa de coração cheio, porque quando se dá também se recebe, outras vezes, reconhece, volta “um bocadinho angustiada”, porque gostava de poder “fazer mais”.

Mário Girão e Maria, que habita o mesmo prédio e também é seguida pela Atlas, recebem a equipa da associação com sorrisos e naturalidade. “São família”. Mário está sentado na cama, junto à janela, afasta o olhar do televisor e rapidamente se põe a brincar com as voluntárias: “São todas conversadoras, não tenho razão de queixa. Só aqui [a Sílvia] é que me trata um bocadinho mal”. De que falam? “Parvoíces”, garante. Há perguntas sobre a perna esquerda, que continua a doer, sobre as idas ao café, por agora suspensas, por precaução, devido à Covid-19, sobre o “muito apoio” que diz receber da Atlas. E promessa de um novo encontro, no próximo sábado.

O projecto Velhos Amigos da associação Atlas começou em Coimbra em 2008 e existe em Leiria desde 2014. Ao todo, em quatro municípios, incluindo Marinha Grande e Pombal, soma quase 500 voluntários e chega a 75 idosos em situação de carência económica e isolamento social, sinalizados pela Segurança Social, pela PSP ou por instituições particulares de solidariedade social, 15 deles no concelho de Leiria.

“Recebemos carinho, histórias de vida, que às vezes nos fazem reflectir, e sorrisos. Para mim é muito gratificante”, refere Ana Paula Venâncio. “Se calhar, mais do que um prato de sopa, precisam de uma palavra amiga e de uma palavra de esperança”. Sílvia Marquês concorda e acrescenta que todos saem transformados de cada momento, tanto os voluntários da Atlas como os utentes da associação: “É ver como estão às vezes quando chegamos e como estão quando vamos embora”.

Segundo Ana Rita Vieira, psicóloga e única funcionária da Atlas a tempo inteiro, a missão do projecto Velhos Amigos é justamente “mobilizar a sociedade”, ou seja, pessoas, empresas e instituições, “para a causa que é o isolamento social da população idosa”. Dar atenção e “criar uma rede de suporte”.

“Há perfis muito diversos. Temos pessoas que não têm família e estão sozinhas e mais desprotegidas, temos pessoas que têm família, mas, por negligência, os filhos não as acompanham, e temos pessoas que têm família mas os filhos vivem numa situação tão carenciada quanto os pais e não conseguem apoiar”, explica a técnica, para quem o confinamento foi o maior desafio que a Atlas já enfrentou, porque os idosos ficaram ainda mais distantes do mundo que os rodeia: “Chegámos a ter beneficiários a ligar a chorar, a dizer que queriam sair de casa. Ficaram mesmo isolados. Temos beneficiários que nem uma televisão têm. Ficaram enclausurados”.

As equipas são fixas, com oito voluntários – dois por fim-de-semana – por cada idoso. “O objectivo é que, depois de se criar uma relação, e dependendo da necessidade do idoso, os voluntários possam ser um contacto, ou seja, se o idoso precisar, ligar durante a semana e pedir o que quer que seja”, descreve Ana Rita Vieira.

Medicamentos, urgências do supermercado, o que for preciso. Há quem leia cartas a analfabetos, há quem ajude a cuidar do jardim. Mas também há limpezas, com o apoio de empresas parceiras. As refeições são garantidas pela rede de restaurantes solidários que suportam o projecto Velhos Amigos.

Na Marinha Grande e em Leiria, a Atlas dinamiza também o projecto Escolas Solidárias: em Leiria, assegura actividades de tempos livres para uma turma de alunos com necessidades especiais; na Marinha Grande, entrega cabazes com alimentos e bens de primeira necessidade, regularmente, a um conjunto de 15 famílias.