Entrevista

Entrevista | Octávio Ferreira: "Todos que tendo a possibilidade de afectar recursos não os afectaram são responsáveis"

20 set 2018 00:00

Antigo responsável do ICNF diz que os serviços florestais deixaram acumular combustível no Pinhal de Leiria durante anos.

Há estrutura no Estado para o trabalho que é necessário? Porque a estrutura que encontrou quando entrou nos serviços florestais nada tem a ver com a actual. 
Nada. Trabalhavam aqui 200 pessoas, agora são umas 20. O que aconteceu foi que nos serviços florestais, no ICNF, nos últimos 10 ou 15 anos saíram 150 colegas meus, que se reformaram, e foram admitidos 30 novos técnicos que de resto estavam já ao serviço e eram imprescindíveis. Os chefes de divisão, os directores de serviço, os directores, os subdirectores, eram pessoas que iam subindo dentro da casa. Mas, nos últimos 15 ou 20 anos, muitos directores vieram de fora porque dentro da casa já não havia pessoas disponíveis para assumir o lugar. A casa está com muito pouca gente, técnicos, designadamente, e como tudo isto tem de assentar na componente técnica, daí a casa estar, não sei se falida, mas pelo menos muito fragilizada.

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E em paralelo há um emagrecimento financeiro. 
Os trabalhos de campo eram feitos por pessoal da casa quando aqui cheguei há 40 anos. Não havendo esse pessoal, tem de haver recursos financeiros. Portanto, sem recursos humanos, sem recursos financeiros, o trabalho não se faz. 

Os técnicos localmente estavam de mãos atadas, face a esse cenário, na Mata Nacional de Leiria?
Localmente, não tínhamos capacidade de decisão. Alertávamos, informávamos, dávamos seguimento àquilo que nos solicitavam, mas a decisão não era nossa. Não tínhamos orçamento sequer. Havia uma hierarquia e essa sim tinha capacidade de decisão. 

Defende que o centro de decisão esteja na Marinha Grande? 
Acima de tudo, o ICNF tem de ter uma estrutura que funcione e seja dotada de meios. 

Que não tem actualmente.
Não, de modo nenhum, e refiro-me especificamente à gestão das matas nacionais. 

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Temos de concluir que há de facto um abandono ou negligência do ICNF na gestão das matas que tinha ao seu cuidado, nos últimos anos? 
Acima de tudo, os recursos disponíveis eram insuficientes, não tenho dúvidas nenhumas sobre isso. Os últimos investimentos que se fizeram de algum montante aqui nas matas nacionais de Leiria, Urso e Pedrógão foram os investimentos financiados pela Medida Agris de 2004 a 2008. A partir de 2008 houve um ou outro investimento pontual, não houve investimento regular. Portanto, com a saída das pessoas e não havendo a componente financeira disponível, o combustível foi-se acumulando nas matas nacionais ao longo de nove ou 10 anos. 

Significa que há responsabilidade do Estado nas consequências do incêndio no Pinhal de Leiria? 
Havendo uma entidade gestora, o ICNF, e havendo um grau de hierarquia, que tem um chefe de divisão, um director, um vice-presidente, um presidente, um secretário de Estado das Florestas, um ministro da Agricultura, dentro de toda esta estrutura, todos aqueles que tendo a possibilidade de afectar recursos não os afectaram, ao longo dos últimos anos, todos esses elementos são responsáveis. Temos de ser claros.
 

Perfil: Uma vida entre cortes e peniscos
Natural de Mação, licenciado em silvicultura pelo Instituto Superior de Agronomia, Octávio Ferreira ingressa na função pública a 1 de Agosto de 1978. Primeira colocação: Marinha Grande, para trabalhar na Mata Nacional de Leiria. A aposentação chegou no passado dia 1 de Junho, ao fim de 40 anos a trabalhar em perímetros florestais do Estado. De 1978 a 1983 na Marinha Grande com a função de técnico, de 1983 a 1987 em Vila Pouca de Aguiar no cargo de administrador florestal. Regressa em 1987 à Marinha Grande e em 1992 é o responsável máximo pela antiga circunscrição florestal. Em 1993, passa a gerir a Zona Florestal do Pinhal Litoral, também com sede na Marinha Grande. Em 1996, os serviços florestais e as matas nacionais são integrados nas direcções regionais de Agricultura. Octávio Ferreira é designado chefe de divisão da gestão florestal para toda a região centro, com direcção de serviços em Coimbra e gabinete na Marinha Grande. Em 2001, passa a técnico do Ministério da Agricultura, funções que manteve até à reforma. Nos últimos anos, a trabalhar directamente nas matas nacionais do Urso e do Pedrógão, dando apoio na Mata Nacional de Leiria sempre que necessário. Era o caso nos dias do incêndio de Outubro de 2017.