Sociedade

Frei Fernando Ventura: "a melhor forma de controlar alguém, ou um país, é conhecer-lhe os medos. Os populistas nascem montados nos medos”

20 dez 2018 00:00

Entrevista | O frade capuchinho revê 2018, fala da actualidade nacional e internacional e do perigo dos populismos, aconselhando respeito e moderação para lidar com a actual “mudança de época”

Jacinto Silva Duro

Quais foram, para si, os factos que marcaram o ano que agora acaba?
Desde logo, o grande fenómeno das migrações, o fechamento das barreiras e construção de muros na Europa e nos Estados Unidos. Em Portugal, temos três momentos dramáticos... em jeito de resumo, podemos dizer que ardemos no Pedrógão, fomos fuzilados em Tancos e morremos afogados em Borba. São três momentos de tragicidade gigantesca. Passo pouco tempo em Portugal e esta é a sensação que tenho, vendo de fora. Anda muita gente preocupada com as fake news [notícias falsas], mas penso que vivemos, em Portugal, um tempo de fog news, isto é, há um certo nevoeiro [fog] e não se sabe muito bem o que aconteceu realmente. Há uma tentativa de colocar cortinas e véus por cima de certas realidades! Foi a não revelação do relatório final daquilo que aconteceu em Pedrógão Grande e nos fogos de Outubro de 2017. É preciso saber o que foi que falhou... Ao certo, não sabemos e, ao certo, provavelmente, a totalidade das vítimas não foi contabilizada. O fogo destapou uma fragilidade, que é também de sentimentos até de gente com responsabilidade nas tutelas. Não sei se é verdade, mas não quero acreditar que, a seguir ao incêndio do Pedrógão, tenha sido feita uma sondagem para averiguar se a popularidade do Governo, na opinião pública, tinha sido tocada. Espero que seja fake news, porque se é assim, terei de mudar de país. A sensação que tenho, como alguém que vê de fora, é que temos dois países: um onde moram as pessoas e outro onde mora a elite político-pensante, que coincide no território, mas não com o espaço de partilha de vida. 


Será só a elite? Ou na sociedade portuguesa também é possível encontrar essas duas realidades?
Também. Há fenómenos que têm crescido em Portugal e um deles é um certo optimismo bacoco, que também me levanta receios, porque cria falsas esperanças. Terminamos o ano com uma grande agitação e, no fundo, estamos a pagar várias facturas. Estamos a pagar a factura de uma solução governativa que chega a prometer este e o outro mundos, quando, de facto, os não poderia dar e agora estamos a pagar isso. Por outro lado, estamos a assistir a uma tribalização da política. Ou seja, o chefe pode ser um sacana, mas é um chefe e os seguidores têm de lá ir prestar vassalagem. Neste final de ano, neste fim de feira, há um Governo apoiado por uma maioria, que, no Parlamento, se compromete mas que, na rua, faz guerra. Há partidos à Esquerda, que apoiam o Governo e que estão a contar o seu espaço de sobrevivência, nas próximas eleições. O Partido Comunista, um dos mais conservadores que existem, diz "estamos aqui", "mandamos ainda nisto" e o Bloco de Esquerda anda à procura, a ver onde pode furar.

Leia aqui a segunda parte da entrevista

“Vi milagres, vi ressurreições a acontecer”


E a Direita?
A Direita anda completamente perdida em guerras internas. O maior partido da oposição anda à procura de si mesmo. Lá dentro, é tempo das facas longas. Não aparece como alternativa e há o CDS, que está a cavalgar a onda… E temos agora esta nova aventura da Aliança, de Santana Lopes. Espero o melhor para o meu País, mas não podemos ficar presos no nacional- -optimismo ou no nacional-porreirismo. O Presidente da República tem tido um papel fantástico ao aguentar a moral das tropas, mas, a dada altura, as coisas podem escapar-lhe da mão. Já houve situações onde foi ultrapassado pelos acontecimentos. No anterior Governo, tínhamos um casamento por conveniência. Não era por amor e, ainda por cima, a noiva - Paulo Portas - era politicamente promiscua e a sogra, alemã, era do piorio. Neste Governo, o casamento é em comandita ou poligamia, onde o noivo fez acordos com duas noivas sem dizer a cada uma o que tinha acordado com a outra. 

 

Fernando Ventura
Comentador e figura do ano

Frade franciscano capuchinho, frei Fernando Ventura, nasceu em 1959, no Porto. Teólogo e biblista, foi professor de Ciências Religiosas no ISCRA em Aveiro e é intérprete na Comissão Teológica Internacional da Santa Sé. Colabora, como tradutor, com diversos organismos internacionais, como a Ordem dos Capuchinhos, a OFS e a Federação Bíblica Mundial. Pertence ao quadro de redactores da revista Bíblica, onde assina artigos de aprofundamento teológico e é autor do primeiro estudo sobre Maria no Islamismo, lançou o livro Roteiro de Leitura da Bíblia (Editorial Presença). Ministra cursos e retiros, percorre o mundo, de convite em convite ou de conferência em conferência, como tradutor. É comentador de actualidade social e religiosa na SIC Notícias e a TSF escolheu-o como "figura do ano", em 2010.

 

Mesmo com poucos poderes constitucionais, Marcelo tem sabido levar a água ao seu moinho?
Tem sabido gerir e gerir-se dentro de uma situação política que não é fácil. Tem sido um dos garantes da estabilidade da legislatura, e tem feito tudo para que a serenidade e racionalidade se mantenham. Tem um papel importante, mas limitado. Por exemplo, vai estar, aqui no Porto, no Hospital de São João, no Serviço de Pediatria e, com certeza, o estado das instalações voltará a ser notícia. Há crianças em pós-operatório em quartos sem janelas, há crianças que no Inverno têm de estar com casacos na cama, com frio, e isto num país onde os nossos representantes parlamentares discutem pensões vitalícias e as viagens fantasma que recebem, quando moram na porta ao lado do Parlamento. Numa situação destas, hei-de berrar o mais que puder, para que as crianças do meu País tenham, pelo menos, o mínimo de dignidade. E isto acontece no Hospital de São João e noutros locais em Portugal. É o tal nevoeiro e o tal país onde quem governa não mora. Ao mesmo tempo, cresceu, na linguagem política, futebolística, sociológica, culinária, etc., a distinção entre "nós" e "os gajos". Já não é entre mim e o outro, pois, com o outro, podemos construir um nós. Mas, com um "gajo", não construímos nada. E a cereja no bolo destas clivagens entre nós e os outros, em termos futebolísticos, foi o ataque a Alcochete. A manifestação da brutalidade e da boçalidade é motivada por um crescendo do discurso do ódio, que é feito em termos futebolísticos, políticos, religiosos… A atomização também tem sido criada pelos sindicatos. Com todo o respeito que tenho pelas plataformas sindicais, a gestão de tudo isto tem sido colocar trabalhadores contra trabalhadores. Quem é afectado pelas greves dos transportes públicos? É quem não tem viatura própria e quem precisa do transporte público para ganhar a vida. Quem é afectado pelas greves nos hospitais? Quem não tem ADSE e não pode recorrer ao privado. São sempre os mais pobres a pagar a factura. Os trabalhadores têm, de facto, o direito de exigir, mas fala-se demasiado em direitos e pouco em deveres.

O que se passa no Mundo? Os EUA escolheram Trump e, agora, o país está completamente dividido, há Duterte nas Filipinas, Bolsonaro, no Brasil, ainda é uma incógnita, o Brexit está uma embrulhada, Viktor Órban levou a Hungria para a extrema-direita e temos os coletes amarelos, em França.
Aconteceu o século XXI. Vimos do século XX, que foi uma “época de mudança” e o século XXI é uma “mudança de época” e ninguém conhece a estrada para a frente. No fin

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