Sociedade
Joaquim Guardado - "Metade da população dos lares será demente em 2020"
O provedor da Santa Casa da Misericórdia de Pombal emociona-se quando fala dos ‘seus’ meninos do centro de deficientes profundos de Fátima, que gere e considera a “mais bonita” experiência da sua vida
Quais os problemas sociais que mais afectam o concelho de Pombal?
As dificuldades financeiras. E temos muita gente, nomeadamente idosos, a quem fornecemos alimentação gratuitamente. Até o fazemos de uma forma mais diplomática, que é ir entregar diariamente nas suas casas - sem que se saiba se as pessoas pagam ou não - como se fosse um serviço de apoio domiciliário. São pessoas daquele sector chamado de ‘pobreza envergonhada’, que não querem assumir que têm essas dificuldades. Esse é um problema não só de Pombal. Mesmo na infância há uma diminuição clara dos valores que os pais podem pagar nas creches. Temos muitas crianças a pagar valores mensais de 25 a 35 euros, o que dá uma ideia das dificuldades que existem nestas instituições.
Como consegue manter a estabilidade financeira?
Somos proprietários do hospital de Pombal, que é gerido pelo Centro Hospitalar Leiria-Pombal. Temos uma renda mensal de cerca de 4500 euros e é isso que nos dá uma almofada financeira para resolver estes problemas sociais.
O anterior Governo falou na hipótese de passar a gestão dos hospitais para as misericórdias. Prefere manter o arrendamento do edifício ou a gestão do hospital?
Vender património nunca. Os hospitais foram geridos pelas misericórdias até ao 25 de Abril de 1974. Depois houve um processo de nacionalização. Alguns hospitais ainda continuam a ser geridos pelas misericórdias, outras fizeram um acordo com o Estado, que passou a gerir pagando uma renda, como é o caso de Pombal. O que pretendemos manter é a situação actual. Somos proprietários e temos um contrato de arrendamento com o Estado.
Disse que tem cada vez mais crianças a pagarem 35 euros, mas há críticas que acusam a Misericórdia de ter a creche e o lar lotados com utentes que pagam a mensalidade máxima.
Qualquer instituição tem de ser sustentável. A Misericórdia é aberta a todas as pessoas e resolve os problemas sociais a muita gente e com qualidade. Se não fosse a misericórdia o que seria destas pessoas? No lar temos pessoas que almoçam e jantam sem pagar. E não só trabalhadores por conta de outrem que perderam o emprego, mas também pessoas que tiveram pequenos negócios e o dinheiro que conseguiram amealhar já está gasto. Agora dependem do serviço da misericórdia, mantendo a mesma dignidade humana. Nós, as misericórdias, e as IPSS [instituições particulares de solidariedade social] temos sido nos últimos anos uma almofada social para resolver muitos problemas existentes no País. Na creche também temos filhos de pessoas com boa capacidade financeira, que chegam a pagar um máximo de 180 euros, e podíamos ir mais além. Nesta casa todos são iguais. Não é uma escola de elite, nem é só para pessoas com dificuldades. Integra-se toda a comunidade social. Precisamos de todos, porque qualquer instituição precisa de sustentabilidade. O custo médio de um utente em lar está entre os 900 e 950 euros. Recebemos à volta de 360 euros do Estado. Se [utente] tiver uma reforma de 400 euros – o que não acontece com a maior parte – quem paga o restante? Hoje a entrada das pessoas nos lares nem sempre pode ser por ordem de inscrição. Imagine-se, por exemplo, que um utente que paga 950 euros morre. Se entra outro que só pode pagar 550 euros, quem paga a diferença?
Como está a situação financeira da Misericórdia de Pombal?
Cada vez temos menos pessoas a deixar-nos os seus bens. Ainda é uma área com algum peso, mas não significativo. Em todo o lado há uma clara diminuição dos beneméritos. E não é fácil gerir estas instituições. Muitas vezes é “chapa ganha, chapa gasta”. Tem de ser uma gestão muito cuidada e com um aspecto de exigência e qualidade. Isso é a marca da diferença. A situação da Misericórdia é clara e simpática, com qualidade. Por exemplo, a Misericórdia de Pombal é das poucas do País que é certificada pela Equass. Isso diferencia-nos das outras instituições.
Com o aumento da esperança média de vida, os lares começam a ter novos desafios?
Hoje começamos a ter problemas de demência. Muitos dos nossos utentes não vão para o lar porque estão muito isolados, mas porque já estão doentes. Muitas vezes, são os próprios hospitais que mandam para os lares indivíduos que não deviam vir, porque não é esse o sentido do lar, como se fosse um hospital de rectaguarda. Estamos hoje com um problema claro que é a longevidade, porque não estamos preparados para o aumento dos anos de vida das pessoas. Antigamente, uma pessoa reformada aos 65 anos pouco tempo durava. Hoje temos aqui pessoas com 80, 90 e até 103 anos. E em que condições? Particularmente com problemas de demências.
Referiu que as misericórdias se substituem muitas vezes ao Estado. Sentem-se reconhecidas?
Sim. O Estado tem-se apercebido dessa situação. Por exemplo, no Governo de Passos Coelho houve cortes em tudo, menos nas comparticipações da Segurança Social. Se tivesse havido uma diminuição das comparticipações, acompanhada das diminuições das comparticipações das pessoas nos lares e creches, muitas instituições teriam de fechar portas. Acho que é um reconhecimento. O grande problema é responder ao número de pedidos. É difícil dizer não a pessoas de quem se conhece a realidade e sentir que quando esta gente precisava de ajuda nós não a podemos dar. Às vezes, são situações de doença dramática, pessoas que não têm ninguém para os acudir e nós não temos capacidade nem espaço. É preciso repensar o envelhecimento. Planear e fazer estudos. Em 2050 haverá um pico de idosos. Estamos preparados para isso? Estamos preparados para o número de demências? Há um estudo que indica que 50% da população dos lares será demente em 2020. Em Pombal temos 32 a 33% de pessoas com demências. Estamos preparados para tecnicamente ajudar e resolver algumas dessas questões? Fazemos um esforço de formação. Temos de ter pessoas preparadas. Com a longevidade, as pessoas aumentam o seu tempo de idade, mas com problemas na área da demência.
Em vez de mais lares são precisos mais centros de apoio à demência, como a Unidade de Cuidados Continuados (UCC) Bento XVI, em Fátima?
Sim. Temos de entrar em UCC mais específicas. A questão dos lares tem de ser muito discutida. Há quem diga que não precisamos de mais lares, mas de dar mais apoio domiciliário. O problema é que se chega a uma altura em que as condições de saúde dessas pessoas não permitem estar em casa. As UCC são situações temporárias e depois têm de regressar à própria casa, onde não têm ninguém para os receber ou têm de ir para um lar. Por isso, o tipo de serviço de lar também tem que mudar. E tem de haver lares para grandes dependentes.
É administrador do Centro de Apoio a Deficientes Profundos João Paulo II. Como tem sido essa experiência?
É a experiência mais bonita da minha vida. É tutor de algumas crianças. No universo de 192, serei tutor de cerca de 94. Para mim, que não tenho filhos, é uma responsabilidade muito grande: eu sou o pai, o primo, o tio, o familiar mais chegado deles. Tenho de lutar por aquele utente para que ele seja bem tratado como se fosse uma pessoa da minha família.
Leia mais na edição impressa ou torne-se assinante para aceder à versão digital integral deste artigo