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La Féria diz que Leiria não tem cultura, Leiria discorda

15 mai 2018 00:00

O encenador afirmou, no domingo, no programa Got Talent que Leiria não tem cultura, causando mal-estar numa cidade que tem lutado por criar uma aposta sólida no sector. O pelouro da Cultura não gostou e convidou os agentes culturais a protestarem.

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O vereador da Cultura, Gonçalo Lopes, após ter feito críticas na rede social Facebook, aos comentários do encenador exortou os vários agentes culturais locais a subscrever uma carta de protesto.

Cultura em Leiria

"Em virtude das declarações do Sr. Filipe la Féria no programa Got Talent Portugal transmitido pela RTP 1 no passado domingo, 13 de Maio, não podíamos ficar indiferentes. Por isso tomámos a liberdade e preparar uma carta resposta para a qual o convidamos, em caso de concordância, a ser subscritor. Caso não concorde com o seu teor agradecemos que nos comunique até às 12 horas, de terça-feira, 15 de Maio. Mais informamos que será dado conhecimento à administração da RTP, à Direcção-Geral de Programas e ao Provedor do Espectador", escreveu Gonçalo Lopes.

Leia aqui a carta

 

Exmo. Sr. Filipe La Féria
Teatro Politeama
R. Portas de Santo Antão 109
1150-266 Lisboa

Leiria, 15 de Maio de 2018

Foi com grande entusiasmo que Leiria assistiu no passado domingo a mais uma exibição de gala dos alunos da Academia de Ballet Dança Annarella no programa Got Talent Portugal, da RTP, que recebeu o aplauso unânime dos jurados do programa.

É um grande orgulho para Leiria e um exemplo da excelência do que por aqui se faz ao nível da cultura. No entanto não nos revemos na declaração que fez em pleno programa, quando disse que a cultura em Leiria é muito pobre.

Estamos convictos que o Sr. Filipe La Féria não quis, intencionalmente, menosprezar a cultura de Leiria e também não acreditamos que o tenha dito para captar audiências. 

Acreditamos sim que a sua vida profissional o impeça de percorrer o país que tantas vezes o aplaude, mas ainda assim não podemos deixar passar esta oportunidade para o desafiar a vir visitar Leiria, esta cidade onde tanta coisa acontece.

É que estamos absolutamente convictos de que encontrará aqui motivos mais do que suficientes para atualizar a sua opinião acerca da cultura que aqui se produz e vive.
Leiria é uma cidade emergente no plano cultural no nosso país, não apenas na dança, mas em muitas outras áreas. No teatro, na música, na literatura, nas artes plásticas, nos nossos museus, nas nossas galerias, nas ruas.

Temos números que ilustram este dinamismo: 21 ranchos folclóricos, 18 associações culturais, 12 filarmónicas, 12 grupos corais, 9 escolas de dança, 6 grupos de teatro, 4 grupos de música tradicional, 2 conservatórios e 3 escolas de música, 1 orquestra e 1 grupo de jazz. Temos mais de 10 projetos musicais premiados e com projeção internacional, a grande maioria constituídos por jovens.

Sabemos que Leiria, como muitas outras cidades do nosso país, sofre com uma visão redutora de uma certa elite que apenas consegue valorizar a cultura dos grandes centros. 

Há em Leiria uma oferta cultural sem precedentes. Criamos público para as artes desde o berço com os concertos para bebés e temos ao longo do ano uma programação com mais de 600 eventos para todos os gostos e para todas as idades. 

Dentro de poucos dias abraçamos as nossas raízes com a recriação histórica “Leiria há 100 anos”, em junho as ruas da cidade são palco do muito inovador festival “A Porta”, apresentamos no final de Agosto o Extramuralhas que atrai amantes da música gótica de toda a Europa, celebramos a grande música universal com o Festival Música em Leiria e com a “Ópera no Património”. 

Até as nossas fachadas transpiram cultura com um festival de arte urbana, e os nossos espaços culturais não são meros guardiões de uma memória. Ao invés, palpitam de vida, de que é exemplo a Festa dos Museus, em que escancaramos portas abertas a toda a comunidade com um programa de grande diversidade cultural.

Estamos a investir na criação do centro de artes Villa Portela, estamos a recuperar o nosso património, em especial no Castelo de Leiria, vamos reforçar a nossa oferta museológica, e oferecemos novos palcos ao público e aos agentes culturais em edifícios de grande valor histórico que se encontravam degradados.

E, por detrás de tudo isto, estão pessoas: artistas, agentes culturais, programadores, associações, grupos de teatro, bandas, um sem número de atores que dão vida a uma ambição na área cultural tal que fomos os primeiros a anunciar a candidatura desta nossa cidade a Capital Europeia da Cultura em 2027.

São estas pessoas que vivem e dão vida à cultura em Leiria, e que subscrevem esta carta, que agora pedem um minuto da sua atenção. Acreditamos que a cultura também se constrói com crítica construtiva, especialmente de vozes consagradas, como é a sua. 

Reiteramos o convite para visitar Leiria em qualquer época do ano e por isso anexamos o nosso programa cultural para 2018, acreditando que assim mude a sua opinião sobre o que se faz em Leiria.

Também o director artístico da SAMP, Paulo Lameiro reagiu na sua página do Facebook

"La Féria, Annarella e a Cultura em Leiria

No passado fim de semana parte da comunidade Leiriense indignou-se com as declarações que Filipe La Féria fez num programa televisivo.

Não vi o programa em causa, mas terá dito que Leiria é uma cidade onde não há cultura, e onde a Escola de Dança da Annarella Sánchez veio oferecer-nos finalmente um projecto que nos distingue artística e culturalmente.

Vamos por partes. É inquestionável o empreendedorismo da Annarella, e a sua capacidade de liderar um projecto em pirâmide que se espalha por pequenos polos da cidade e região.

Rodeada por um grupo de profissionais dedicados, que também soube captar e fixar em Leiria, tem vindo a consolidar o rastreio de especiais aptidões, e motivar alunos e suas famílias para a área da Dança numa estratégia de forte consistência.

É particularmente significativo, como já tive oportunidade de escrever e divulgar, a visão mobilizadora de captar para o seu projecto de ensino um número surpreendente de famílias de fora do país, que trocam cidades europeias por Leiria para a educação dos seus filhos.

Temos todos de lhe tirar o chapéu, e agradecer pelo seu exemplo de resiliência, pela sua tenacidade e ambição (que não é demérito). Conheço alguns dos seus mais proeminentes alunos e seus pais das aulas de Berço das Artes que frequentaram na sua primeira infância, e são na verdade talentos invulgares que não se teriam revelado sem o trabalho de Annarella Sánchez. Muito obrigado Annarella.

Mas, importa compreender um pouco mais do que é a indústria televisiva que deu origem ao presente debate. O nível cultural de uma cidade não se mede pelos títulos ganhos no Got Talent.

O Got Talent nada tem a ver com talento artístico, tem somente a ver com negócio. O que é de todo legítimo, também importa referir. É feito para vender publicidade, e, como tal, seleciona e promove quem melhor serve para esse fim. Usa (abusa de?) quem procura notoriedade, e não quem tem necessariamente talento.

Assim como o nível musical de um país não se mede pela quantidade de títulos do Festival da Eurovisão. Também o Eurofestival é um negócio televisivo (e político) que usa como conteúdos uma montra de produtos atraentes onde a arte musical não entra.

Podemos interrogar-nos porque não entra, e porque é atraente o fogo de artifício e não uma orquestra ao vivo, mas os produtores televisivos cedo descobriram que há mais espectadores a ligar e permanecer em frente a um ecrã com um banho de fogo e uma realização psicadélica do que com uma boa voz, uma melodia inovadora, um bom arranjo, e uma orquestra ao vivo que, sendo cara, é muito mais barata do que os meios tecnológicos contratados para o que durante 3 noites foi emitido para todo o mundo.

Se de arte e cultura se tratasse não deixavam a decisão nas mãos de televotos. Estes programas, muito bem estudados pelo marketing, escolhem jurados pelas suas qualidades e mais valias de comunicação, muitas vezes pela sua excentricidade e carisma televisivo, e não pelas suas competências artísticas. São vendedores assistentes e não Jurados.

O televoto é hoje um negócio controlado por empresas nacionais e internacionais especializadas, com objectivos de mercado, e cada vez mais, também políticos, como se sabe. O senhor Filipe la Féria tem todo o direito de promover as suas revistas pelos teatros municipais do país, e de menosprezar aqueles que o não contratam.

Mas também aqui, o nível cultural de uma cidade não se mede pelo número de espectáculos e de espectadores dos produtos La Féria. Então em que se mede a cultura de uma cidade e o nível cultural dos seus habitantes?

Mede-se pelo número daqueles para quem a cultura é o meio privilegiado de expressão, de representação da sua identidade. Mede-se pelo número de livros que lêem por ano, pelo número de bibliotecas e dos seus leitores. Importam os projectos profissionais de música, dança e teatro?

Sim, mas importa igualmente (mais?!) o número de pessoas que se junta todas as semanas para dançar e tocar nos Ranchos e nas Bandas Filarmónicas, e depois para actuar em festas, feiras e romarias numa relação fecunda e histórica com as gentes, os territórios e as memórias.

Importam os coros e os grupos de música tradicional. Importam todas as escolas de dança, de música e de teatro. Importam os museus e os festivais, as bandas de liceu e de garagem. Importa o número de galerias, de realizadores de cinema, de poetas, de arquitectos, mas também de publicações dedicadas à cultura, revistas e jornais, físicos e online.

Quantas páginas de futebol têm os nossos jornais e quantas de cultura? Quantos jornalistas especializados em cultura pertencem aos quadros da nossa comunicação social? Importam as conversas de café e os espaços que nos estimulam a imaginação e o pensamento.

Importa a gastronomia histórica e criativa. Importam-nos todas as Annarellas e Casalinhos, mas não por terem ganho o Got Talent. Também nos importa o número daqueles que individual ou empresarialmente tiveram a capacidade de se profissionalizar no universo das artes e da cultura, tanto quanto todos os outros que a praticam amadoramente no seu dia a dia.

Leiria, como todo o Portugal e boa parte da Europa, tem alguns destes indicadores em baixo. Mas não tem de que se envergonhar, antes pelo contrário.

Alguém faz ideia de quantos leirienses de todas as gerações se encontra semanalmente para cantar, tocar, dançar e fazer teatro?"
Paulo Lameiro, director artístico da SAMP