Sociedade

Largou tudo pela verdade que há em Nós nos Outros

17 dez 2020 16:54

Maria Helena da Bernarda dedica-se a publicar diariamente histórias de gente anónima, que conhece e questiona na rua, equipada com máquina fotográfica e o gravador de voz do telemóvel.

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De gestora na indústria a fotógrafa e 'sensação' nas redes sociais
DR

Encontrou-o por acaso numa inauguração e bastaram alguns minutos de conversa para fixar Marcelo Rebelo de Sousa na cronologia do projecto Nós nos Outros, que Maria Helena da Bernarda, 57 anos, mantém no Facebook com aproximadamente 30 mil seguidores.

No depoimento, o Presidente da República conta que se dedica a causas sociais desde jovem – começou por intervir nos bairros de lata, em Lisboa – e sinaliza o problema dos sem-abrigo, que continua por resolver.

Fala também de como o cargo de chefe de Estado o obriga a ouvir a voz da razão, apesar de reconhecer que, por natureza, é sobretudo coração.

Com raízes em Alcobaça, nascida numa família de industriais, Helena da Bernarda ocupou durante décadas cargos de direcção ou administração em empresas, mas, desde há dois anos, dedica-se a publicar diariamente, sem excepção, histórias de gente anónima, que conhece e questiona na rua, equipada com máquina fotográfica e o gravador de voz do telemóvel.

Registou, por exemplo, a mulher de 88 anos que todos os dias se sentava num centro comercial a ouvir música ao vivo. Quando a equipa de gestão dispensou os pianistas, ela continuou a ir e a lembrar-se do piano de solteira que o marido não quis na casa nova, ou seja, a matar saudades de uma vida inteira. Helena da Bernarda convidou-a para um chá, tocou para ela, passou-lhe o teclado. E um dia convenceu Mário Laginha a aparecer de surpresa no shopping e a reabrir o piano trancado a cadeado para reanimar Chopin, o compositor favorito da idosa.

Marcelo Rebelo de Sousa, Mário Laginha e outras figuras públicas estão em minoria entre centenas de rostos sem fama, de todas as idades e classes sociais, no projecto Nós nos Outros. Nem todos os percursos são bonitos ou terminam com final feliz. Também lá estão o engraxador de sapatos nascido de uma relação de abuso do avô sobre a mãe e o homem que veio ao mundo no dia em que o pai se suicidou.

Primeiro livro

Iniciado em Novembro de 2018, o projecto Nós nos Outros chega agora ao formato livro, numa edição de 1.000 exemplares, sem apoios, lançada ontem, dia 16. A página de Facebook – a primeira publicação capta uma imigrante da Venezuela acabada de chegar a Portugal sem o filho menor – é o lugar de encontro, num exercício que, segundo a autora, desafia “a olhar para os outros” e revela o “potencial de generosidade” contido em cada ser humano.

Helena da Bernarda quis criar uma comunidade e “pôr as pessoas a falar”, a explicar “como se sentem nas suas circunstâncias de vida", a manifestarem-se com “verdade” acerca da felicidade e das dificuldades, sem “máscaras e filtros”. E diz-se comovida com o “nível de interacção e de positividade” que obteve.

Mais de 750 publicações

“Gosto de partilhar, de interagir”, explica ao JORNAL DE LEIRIA. De comunicar o conhecimento e o sentimento. Para trás, há um tempo profissional “muito intenso”, interrompido por decisão própria. “Cheguei a um ponto, fiz um balanço e pensei que tinha de ponderar muito bem o meu futuro, os benefícios materiais e imateriais”.

Parou, reorganizou-se, retomou aulas de piano, inscreveu-se num curso de fotografia e percebeu que a máquina fotográfica “desenvolve uma sensibilidade no olhar, para as coisas, para as pessoas, para o mundo”. E depois de conhecer o site Humans of New York, através de uma sobrinha, não demorou a iniciar o projecto Nós nos Outros, que alimenta até hoje.

No caminho, descobriu que “é muito raro alguém dizer que não”, provavelmente, arrisca, porque “as pessoas têm uma certa necessidade de falar”. E ainda se surpreende com “a aceitação” de quase todos “para falar, sobretudo, sabendo que [o registo] vai ser publicado”. O discurso, na primeira pessoa, é escrito por Helena da Bernarda, para quem não há, desde a primeira hora, “uma única pessoa desinteressante”.

Com o Nós nos Outros quer percorrer o País e até já se internacionalizou: em São Tomé, 33 entrevistas e 1.500 fotografias. “O que eram as minhas férias em praia deitada ao sol passaram a ser andar pelas terras e falar com as pessoas”. Uma “vida preenchida”.

As mensagens de agradecimento dos leitores e as amizades que ficam das entrevistas são agora a energia que a faz continuar. Mais de 750 publicações até à data, com alguns protagonistas a justificarem mais do que um texto. Todos os dias, sem faltas. “É preciso gostar. Quando se gosta, não há esforço”.