Economia
Leiria mobiliza a sua indústria e tecnologia para cluster económico da Defesa
A região prepara-se para entrar na defesa com um plano estratégico, mobilizando empresas, centros tecnológicos e startups. A aposta é no uso dual, na inovação e nos moldes, procurando garantir competitividade num campo em rápida transformação
Poucos dias após o Governo aprovar um investimento de 5,8 mil milhões de euros para a defesa – valor equivalente a 12 anos de orçamento previsto na Lei da Programação Militar –, o Plano Estratégico Regional para a Indústria de Defesa da Região de Leiria (PERID-RL) deverá ser apresentado nas próximas semanas a empresários e parceiros.
O primeiro-secretário da Comunidade Intermunicipal da Região de Leiria (CIMRL), Paulo Batista Santos, explica que a iniciativa, colocada em marcha pela Nerlei – CCI (Associação Empresarial da Região de Leiria – Câmara de Comércio e Indústria), pela CIMRL e pela incubadora Startup Leiria, conhecerá o seu formato final assim que for apresentada ao Executivo.
O documento provisório foi dado a conhecer a vários parceiros em Outubro.
A versão definitiva representa o fruto de seis meses de trabalho interno e externo, durante o qual foram identificadas as oportunidades de negócio, as necessidades e os passos a dar pelas empresas para entrarem nas cadeias de fornecimento.
“Com o plano, os empresários terão um guião com respostas a várias questões, como o acesso às fontes de financiamento”, afirma, sublinhando que os contactos com instituições como o BEI – Banco Europeu de Investimento foram “muito positivos”.
Os detalhes do PERID-RL ainda não são totalmente conhecidos, porém, houve já várias abordagens públicas àquilo que ele deverá conter, estando, previsivelmente, alinhado com a lista de estratégias e iniciativas essenciais para a entrada e operação na fileira da defesa e para a internacionalização da indústria portuguesa nesta área de negócio, criada pela AICEP – Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal.
Neste momento, a economia de defesa deixou de ser “um universo reservado a fabricantes de armas, construtores navais e metalomecânica pesada”, devido à transformação tecnológica que abriu espaço a empresas altamente especializadas, oriundas de áreas fora deste universo.
Assim, Portugal só será competitivo neste ramo se souber mobilizar a sua Base Tecnológica e Industrial de Defesa (BTID), com destaque para as áreas do software, dos plásticos, da borracha e da indústria de moldes e ferramentas.
A Região de Leiria também quer marcar presença neste esforço através do tecido empresarial local e do PERID-RL.
A CIMRL, a Nerlei – CCI e a Startup Leiria estão a envidar esforços para apoiar as startups e PME regionais que pretendam entrar no mercado da defesa.
O plano estratégico prevê a criação de um cluster de empresas dedicadas ou com participação nesta nova área de mercado.
Entre os empresários da região que já estão a dar passos para a introdução dos seus produtos na cadeia de valor dual use – “uso dual” com uso prático na defesa, mas com potencial reconhecido para aplicação civil – as palavras de ordem são “rapidez e urgência”. Isto porque, por um lado, “a ameaça externa do bloco russo é cada vez mais evidente”, com operações de provocação envolvendo violação de espaços aéreos, drones em aeroportos e outras estruturas de comunicação e ataques cibernéticos, por outro, parece ser “demasiado provável que os EUA, o país que ditou e liderou a estrutura de segurança europeia e do Atlântico Norte, não cumpram o disposto no Artigo 5.º da Carta da NATO”, que estabelece a obrigação de um Estado-membro de responder a um ataque contra outro parceiro, apesar de, até agora, os Estados Unidos terem sido o único país a usufruir desse apoio, após o 11 de Setembro de 2001.
“Além desse isolacionismo, o presidente Trump apresenta como argumento a necessidade de cortar nos gastos com defesa no Orçamento do Estado e essa é uma medida muito popular entre o seu eleitorado”, adverte João Mota.
Acabado de chegar de uma reunião entre vários empresários nacionais e o AED Cluster Portugal, organismo português para as indústrias da aeronáutica, espaço e defesa, o responsável pelo desenvolvimento de negócio da softwarehouse de Leiria, Void, ficou impressionado com a quantidade de stakeholders de Leiria, Coimbra e restante região Centro presentes.
“É uma árvore que se está a plantar. É preciso ser célere a plantá-la, mas é precisa muita paciência para cuidar dela e deixá-la crescer, para um dia, frutificar.”
Para a Void, o futuro é a defesa.
A previsão de financiamentos nacionais, os apoios prometidos pelo Fundo Europeu de Defesa, bem como a experiência desta empresa a liderar a Agenda Mobilizadora Blockchain.pt e a participação noutras três, dão aos responsáveis a confiança necessária para se lançarem em novo rumo.
“No mundo militar, o software está presente em toda a parte e as Forças Armadas Portuguesas querem uma mobilização do ecossistema das startups e das tecnológicas. Neste momento, queixam-se da falta de velocidade nas respostas das empresas.”
A janela curta de oportunidade neste mercado também tem a ver com a competição. “É o timing do mercado. Há o desafio de gastar entre três a 4% do PIB em dual use e, se as empresas demorarem muito, serão completamente ultrapassadas pelas congéneres da União Europeia. Temos até 2030 para aumentar o investimento e já temos muita gente muito focada nisto em Portugal. Temos exemplos como os centros de investigação que já estão a contactar empresas nas suas regiões para juntos, oferecerem produtos com valor acrescentado, como o CiTEV, no Norte do País, que já tem várias iniciativas na área do têxtil técnico, que pode ser empregue em uso civil ou para um fardamentos. O CEiiA – Centro de Engenharia e Desenvolvimento tem trabalhado na área da aeronáutica e aeroespacial e na área da defesa”, refere o director-geral da Startup Leiria.
Vítor Ferreira admite que a região de Leiria está atrasada em relação a outros pontos do País, onde já estão constituídos consórcios e há trabalho prévio.
“Embora, obviamente, com o cluster da região, criado com o apoio da CIMRL, da Nerlei - CCI, da Cefamol e de outros players, o trabalho já feito seja determinante.”
Olhando para as duas faces da moeda, Portugal, tal como outros parceiros europeus, pretende transformar a despesa de defesa num investimento económico crucial e num motor de desenvolvimento.
Esta intenção baseia-se no reconhecimento de que a defesa, que, antes, era vista como um custo estratégico, se poderá tornar motor da economia portuguesa, onde as fileiras dos moldes, plásticos, software e fabrico avançado terão um papel importante, integradas em consórcios, pelo menos numa primeira fase, e, assim, alavancar a presença do País num mercado muito difícil.
“É uma fileira muito interessante, onde é necessária muita certificação e triagem de segurança e, como tal, os fornecedores não são substituídos tão facilmente como, por exemplo, no ramo do automóvel. Há aqui uma importante questão de soberania e de segurança, que não se pode descurar”, faz notar, por seu turno, João Mota.
150 mil milhões de investimento europeu
A nível nacional, a AICEP esclarece que a estratégia está a ser alinhada por entidades como a idD Portugal Defence, a própria AICEP e o AED Cluster Portugal, na premissa de que “cada euro gasto em modernização militar deve converter-se em retorno económico, tecnológico e exportador”, sublinhando que o investimento militar deve ser “uma sementeira económica”, onde a indústria aposta na incorporação de valor interno.
O País não se limitará a adquirir helicópteros, drones, fragatas ou sistemas de comunicações sem que estes equipamentos integrem módulos, componentes, software ou materiais produzidos por empresas portuguesas.
A estratégia passa por certificar que as multinacionais que vendem a Portugal incluam PME nacionais nas suas cadeias globais de fornecimento, tendo como contrapartida a criação de emprego qualificado, o reforço das competências científicas e a expansão das exportações.
O programa europeu SAFE dedicou 150 mil milhões de euros a produtos de defesa cuja manufactura deve contar com uma percentagem de 65% realizada em solo do continente, mas há alguns perigos decorrentes da cultura empresarial nacional, como adverte um empresário da região presente neste mercado, mas que prefere não ser identificado.
“É preciso não fazer mais do mesmo”
“Ainda estamos na fase de definição e organização dos alvos desta iniciativa. Os responsáveis de empresas da região têm de entender que é preciso não fazer mais do mesmo. Esses lugares tradicionais há muito que já estão mais do que ocupados. Temos de apostar em valor acrescentado e de conseguir estabelecer coisas novas”, diz, admitindo “ser difícil” chegar a consensos na região de Leiria. “Temos de concentrar a nossa força, sob pena de sermos mais um grupo desgarrado em busca de clientes”, adianta, sublinhando que é “imperioso” que os intervenientes políticos façam o seu papel e ajudem a criar um lobby para Leiria dentro da área da defesa, capaz de responder ao “grande esforço” para criar um núcleo coeso de empresas capazes de operar neste novo mundo.
“Temos players que já estão na área a auxiliar a nossa indústria a entrar na fileira.”
O ecossistema BTID integra áreas como o software, uma vez que os campos de batalha de hoje empregam sistemas integrados, sistemas de análise de dados, plataformas de comando e controlo, de inteligência artificial (IA) e de cibersegurança.
“Na verdade, cada drone, cada sensor, cada plataforma de vigilância depende de código e Portugal, que criou um ecossistema dinâmico de startups e centros de engenharia, está bem posicionado para tirar partido deste movimento”, refere outro responsável por uma startup da região, que, neste momento, já fez vários contactos e visitas a multinacionais que operam na fileira da defesa.
O conceito de “duplo uso” tornou-se incontornável.
O investimento em defesa servirá para modernizar as Forças Armadas e, em simultâneo, para robustecer áreas civis, acelerar a inovação e a investigação e desenvolvimento (I&D).
Resumindo, uma tecnologia criada para vigilância marítima pode ser usada no combate a incêndios, um software de planeamento militar pode ser adaptado à logística civil, um compósito balístico pode resultar em melhores estruturas para aviação comercial e de segurança pessoal.
Este é um cenário onde as empresas especializadas em software crítico, programação embebida, análise de dados, algoritmos de navegação, sistemas anti-drone, simulação e treino virtual, entre outras áreas, podem tornar-se essenciais para a BTID, uma vez que esta é uma área de baixo peso logístico, alto valor acrescentado e de fácil exportação. Mas é nos moldes e ferramentas especiais que se pode identificar um nicho estratégico.
A região de Leiria alavanca Portugal como um dos líderes europeus, com forte tradição exportadora e competências reconhecidas.
Pouco ou nada é produzido na indústria sem recurso aos moldes e ferramentas. Uma simples escova de dentes ou cotonete diário necessita de moldes e plástico.
“Nos últimos anos, estes mercados de baixo valor têm sofrido com a concorrência chinesa e de outros países emergentes; no entanto, não podemos estar dependentes de países não europeus, até porque, no caso da China, estamos a falar de um dos nossos potenciais antagonistas”, refere o mesmo empresário.
O mercado de moldes, plásticos, borrachas, materiais compósitos e ferramentas especiais deverá ser liderado, essencialmente, por empresas portuguesas, dada a sua tradição na área.
No contexto da defesa, os moldes são essenciais para o fabrico de componentes estruturais em polímeros e resinas avançadas, a produção de carcaças técnicas para equipamentos de comunicação, sensores ou baterias, a criação de peças balísticas em compósitos ou a produção de elementos estruturais aeronáuticos, navais ou terrestres.
Os materiais compósitos e polímeros também fazem parte de uma importante tranche de equipamentos, em especial os de segurança pessoal.
Estas matérias-primas são mais leves, mais resistentes e com desempenho balístico elevado.
“A produção de capacetes, escudos e placas balísticas pode estar ao alcance das nossas empresas.”

Startup Leiria ajuda startups com o Defence Accelerator
A Startup Leiria, durante a última edição da Web Summit, deu mais um passo no âmbito do compromisso com o cluster regional da defesa.
Durante a grande mostra tecnológica e de ideias de negócios, foi apresentado o programa Defense Accelerator, iniciativa estruturada para atrair e capacitar startups e PME de dual use, que se iniciou no dia 26 de Novembro e, durante cinco semanas, auxiliará estas empresas com os requisitos regulatórios para aceder a cadeias de procurement da NATO e posicionarem-se competitivamente em calls europeias de financiamento.
A apresentação foi feita no seguimento de uma mesa-redonda com representantes do AED Cluster Portugal e da idD Portugal Defence, organismo do Estado português cuja missão passa por executar políticas de defesa através da gestão de participações financeiras públicas em empresas da fileira, promovendo o desenvolvimento e a competitividade de base industrial e tecnológica.
A Tekever, o mais recente unicórnio nacional (startup de capital fechado com uma avaliação de mercado superior a 970 milhões de euros ou 1 bilião de dólares americanos), com instalações em Caldas da Rainha e Leiria, também esteve presente.
Numa conversa sobre oportunidades, desafios e espaço para integrar a cadeia de valor, o Defense Accelerator foi uma das estrelas.
Com cerca de quatro dezenas de participantes, o programa propõe-se auxiliar as startups e as PME a dar os primeiros passos na área da defesa, uma vez que uma das principais dificuldades identificadas neste proprocesso é o ingresso neste novo mundo.
O programa assentará nas questões regulatórias e acreditações, financiamento europeu, cadeias de abastecimento e procurement da NATO, além do alinhamento com as necessidades do mercado.
Assim, a Startup Leiria dirigiu as primeiras sessões para as oportunidades e certificações necessárias que permitem aos stakeholders estar presentes na fileira da defesa.
Os encontros com empresários e responsáveis institucionais contarão com a presença de especialistas que partilharão experiências e darão conselhos aos participantes.
Após o tema das certificações, na terceira sessão haverá esclarecimentos sobre o financiamento e quais os instrumentos económicos disponíveis, onde se abordará o financiamento, desde o fundo NATO DIANA – Defence Innovation Accelerator for the North Atlantic, ou Acelerador de Inovação em Defesa para o Atlântico Norte, lançado em 2022 a fim de promover a superioridade tecnológica da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), até à vertente privada do fundo de capital Indico.
Também se explorarão as oportunidades europeias criadas através do EDF e do EUDIS e pela revisão da Base Tecnológica e Industrial de Defesa (BTID) nacional.
Na quarta sessão será abordada a integração em cadeias de valor, uma vez que o acesso à fileira da defesa, a solo, em especial de PME sem tradição na área, raramente é bem-sucedido, sendo, por vezes, necessário integrar consórcios com várias empresas para fornecer um componente ou software específico de um produto composto, solicitado por potenciais clientes, sejam Estados ou empresas.
O mercado da defesa é bastante complexo, pois funciona quer em regime de monopsónio quer de oligopsónio.
No primeiro, existe apenas um único comprador para um produto ou serviço oferecido por diversos vendedores.
O único comprador possui um poder de mercado significativo e é capaz de influenciar o preço do bem ou serviço, alterando a quantidade que decide comprar. Os vendedores têm poucas ou nenhumas alternativas para escoar a sua produção, o que os força a competir entre si para conquistar o único comprador, resultando geralmente em preços de venda mais baixos.
No segundo caso, há um número pequeno de grandes compradores para um produto ou serviço oferecido por numerosos vendedores.
Embora haja alguma competição entre os compradores, esse grupo detém um poder de negociação considerável e pode influenciar os preços e as condições de venda.
Os vendedores ainda têm opções limitadas de negociação e, muitas vezes, aceitam as condições impostas pelos grandes compradores para garantir a venda da sua produção.
Nesta sessão estarão presentes responsáveis da sociedade de advogados Vieira de Almeida (VdA), especializada em consultoria estratégica e regulatória para a Aviação, Espaço e Defesa, da Thales, que desenvolve soluções de software e sistemas de comunicação e de comando e controlo para a defesa, e das OGMA, participadas pelo Estado português e pelo fabricante aeronáutico brasileiro Embraer, que se dedica à manutenção, reparação e revisão geral de aeronaves, motores, componentes e estruturas.
“É uma oportunidade bastante importante, sobretudo tendo em conta que muitas das nossas indústrias locais, como os moldes, plásticos, metal ou metalomecânica, têm sofrido devido à crise da indústria automóvel europeia. E isto é uma oportunidade fantástica que não se deve perder”, resume o director-geral da Startup Leiria, Vítor Ferreira.