Desporto
Luciano Gonçalves: “É preciso haver algo realmente grave para o futebol português mudar”
Numa altura em que a arbitragem está novamente envolvida em polémica, o presidente da APAF responsabiliza os comentadores desportivos pelo clima de suspeição vigente.
Passou ano e meio desde que assumiu a liderança da Associação Portuguesa de Árbitros de Futebol (APAF).
Foi uma volta de 180 graus da minha vida. Tive de deixar o trabalho e vou todos os dias para Lisboa, salvo aqueles em que tenho de ir ao Porto ou a Braga. Há dias em que vou para Lisboa e depois tenho de ir a Aveiro, ao Porto ou onde tiver de ser. O carro que tenho desde Março já chegou aos 61 mil quilómetros. Isso diz um bocadinho do que é a minha vida.
Apesar de ser pesado, calculo que seja desafiante.
Aprendem-se muitas coisas pela positiva e muitas outras pela negativa. Acordo muitos dias a pensar que gostava de voltar ao meu trabalho antigo, nas obras públicas, mas há outros em que tenho um grande orgulho no que estou a fazer com a minha equipa. Que é duro, é.
Como a família reage a esta maior ausência?
Saio de casa e os miúdos vão para a escola, chego a casa e os miúdos já estão a dormir. E depois, ao fim-de-semana, que era suposto estar com eles, também acaba por ser difícil. São três, dois deles jogam à bola e sei que gostam que eu assista às partidas. Tento acompanhá-los ao máximo. E passo as viagens ao telefone, à conversa com eles.
Porta-se bem enquanto espectador dos jogos dos seus filhos?
Interiormente, claro que me pergunto como é que o árbitro não viu isto ou aquilo, mas não faço parte daquela percentagem da crítica avulso, que só para ficar bem no grupo, com a boca mais engraçada.
Essa análise ao trabalho do árbitro é normal, o problema é como as pessoas se exprimem.
É isso mesmo que me choca. Não é criticarmos a arbitragem, porque isso é mesmo assim. Dizer que era penalty e o árbitro não viu, isso faz parte. O que não faz parte, e é isso que está a destruir o futebol, é entrar na suspeição. Quando temos informação que determinado árbitro é corrupto, devemos mandar o que sabemos para o Ministério Público. Há instituições próprias para isso, que já descobriram casos de corrupção noutras áreas e até na arbitragem. Este tem de ser o caminho, não o da chacota pública.
Mete a mão no fogo por todos os árbitros?
Não meto a mão no fogo por ninguém, nem mesmo por mim. Uma coisa é certa: para mim, até prova em contrário, todos tudo o que eles dizem é verdade. Não tenho dúvidas que podemos ter árbitros com comportamentos incorrectos. Faz parte da sociedade, temos disso na política, nas empresas, em todo o lado. Ma se conheço alguém com comportamentos desviantes vou arranjar forma de o tirar da arbitragem.
Pode dar um exemplo?
Havia um jovem árbitro de base, muito promissor, tinha tudo para ser excelente. Boas notas, fisicamente muito bom, mas comecei a ter indicações de colegas de que desapareciam coisas. Umas vezes era o dinheiro, outras o telemóvel, mas não quis acreditar. Fala um, falam dois, falam três e comecei a ficar na dúvida. Tive de engendrar um esquema para perceber se era verdade e, de facto, era. Apanhei-o a furtar dez euros das calças de um colega e não descansei enquanto não o tirei da arbitragem.
Não seria interessante para a arbitragem tornar esse caso público, para provar que andam atentos?
Bom para a arbitragem seria, mas não podemos amputar a vida social e desportiva de um jovem, que para a arbitragem não serve, que tem aquela fragilidade, mas pode muito bem mudar e enquadrar-se numa outra qualquer actividade. É muito difícil moldar os vícios que vêm de trás. Estamos a trabalhar no sentido de eles compreenderem que a partir do momento em que vão para árbitros têm de deixar de publicar sinais de clubismo no Facebook.
É dada atenção suficiente aos jovens árbitros?
Temos andado com a pirâmide invertida. Olhamos muito para o topo e só quando existe um bocadinho de tempo é que olhamos para baixo. Precisamos de cinco mil bons árbitros em baixo para ter 12 sensacionais lá em cima. Cá em baixo, temos quatro mil. Tem havido uma evolução enorme do número de praticantes e precisamos de muito mais jovens a arbitrar. Mas não podemos aceitar que arbitrem sete jogos num fim-de-semana. Não consigo chegar ao pé de um jovem de 17 anos e dizer-lhe que a arbitragem é espectacular, uma saída profissional, dá para ganhar umas coroas, mas depois damos-lhe jogos na sexta, no sábado e no domingo. E ele pergunta-me: quando vou gastar o dinheiro?
Os árbitros dos distritais, apesar de menos mediáticos, também sofrem.
Se o Sporting, o Benfica ou o FC Porto jogarem a um sábado e existir algum problema com a arbitragem, a probabilidade de haver agressões no domingo, é enorme. O impacto é abismal. As máquinas de comunicação desses clubes são muito poderosas e põem cá fora o que mais lhes convém.
Culpa os comentadores?
Claro que culpo. O problema é que não existe quem regulamente estes programas, alguns deles absolutamente vergonhosos, a roçar a pornografia e a estupidez. Fala-se 35 horas por semana de arbitragem na televisão portuguesa, temos três jornais desportivos diários e os outros também falam de futebol. Tem de existir alguém que meta mão nisto e que ponha esses programas, que deviam ter bola vermelha porque incentivam o ódio e a violência, depois da meia-noite. Atenção, também temos excelentes comentadores desportivos, que dá gozo ouvi-los e não deixam de criticar a arbitragem.
Disse que os árbitros do primeiro escalão não vão arbitrar os jogos da próxima jornada da Taça da Liga.
Fizemos um pré-aviso de greve, porque os presidentes dos clubes têm de perceber que alguma coisa tem de ser feita. Acredito que temos grandes dirigentes, pessoas com quem dá gosto trabalhar, com um pensamento fantástico sobre o futebol, mas depois encarnam outra personalidade quando falam para o público. Se não sentirmos que os clubes querem alterar o estado das coisas, naturalmente não haverá árbitros a partir da
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