Sociedade

O mundo a branco e preto

27 out 2016 00:00

A educação e a correcção das desigualdades são determinantes para que as pessoas diferentes, pelas suas características pessoais ou pelas suas escolhas, deixem de se sentir como tal. O JORNAL DE LEIRIA conta-lhe quatro histórias de coragem e determinação

o-mundo-a-branco-e-preto-5289

Aos 13 anos de idade, Gabriela Dâmaso tem uma maturidade fora do comum, própria de quem já passou por muito na vida. Nasceu em Cabo-Verde, mas sente-se portuguesa. Nasceu com a pela escura, mas sente-se branca. E tem pais com uma aparência diferente da dela, mas que sente como seus, ao ponto de identificar características físicas comuns com eles, como os olhos da mãe ou madeixas de cabelo da tonalidade do pai.

E se os pais, a família e os amigos da família encaram Gabriela como filha biológica de Sofia Duarte e João Dâmaso, com 46 e 47, respectivamente, aquele pequeno pormenor que os distingue pode fazer toda a diferença, quando está fora do seu ambiente. “Nos parques infantis em Leiria, os miúdos afastavam-se quando ela chegava e as mães e as avós pegavam nas crianças e iam-se embora”, recorda a mãe, visivelmente incomodada.

“Não se inibiam porque não viam nenhuma mãe nem nenhuma avó preta”, justifica. Incrédula com a reacção das pessoas, Sofia Duarte diz que passou a tratá- -la por filha, alto e bom som, para a proteger e evitar que fosse exposta àquele tipo de situações. “Fiquei chocada por achar que isso não ia acontecer em Leiria, por ser um meio urbano.”

Na Praça Rodrigues Lobo, acontecia a mesma coisa: poucos meninos se aproximavam de Gabriela para brincar com ela, como sucedia com outras crianças. “Quando ia com o João, como ele era conhecido, era diferente. Quando ia comigo, não.” Sofia Duarte garante que nunca sentiu que a filha era alvo de racismo nem em Lisboa, onde se deslocava para visitar a família, nem na Marinha Grande, onde costumava frequentar parques infantis. “Para mim, era um alívio, porque brincavam com ela.”

Preta, feia e pobre
Embora não se recorde destes episódios, Gabriela passou por momentos muito difíceis quando foi estudar para uma escola do distrito onde não conhecia ninguém, depois de ter estado os últimos cinco anos no Jardim-Escola João de Deus, em Leiria, onde estava bem integrada e tinha muitos amigos. Apesar disso, a mãe não esquece um incidente, logo no primeiro dia desta escola, quando uma criança a insultou, quando a viu: “És preta, feia e pobre!”.

Embora os pais a tenham tentado preparar para o embate que se adivinhava na nova escola do 2.º ciclo, ao alertá-la para o facto de ser frequente os miúdos gozarem com os mais vulneráveis, por usarem óculos, serem gordos ou terem a cor da pele diferente, a adaptação foi pior do que pensava. Ainda assim, conseguiu pôr em prática um ensinamento que lhe transmitiram: não chorar à frente de ninguém.

Na tentativa de passar despercebida, Gabriela decidiu pôr de parte as roupas coloridas e os adereços, que usava no João de Deus, e passou a usar leggings azuis ou cinzentas, com blusas de tonalidades também escuras, e o cabelo sempre apanhado. “Vestia-me muito mal, para não dar nas vistas. Queria ser invisível”, justifica. Mas não conseguiu.

“Fui recebida super-mal, porque as pessoas já se conheciam desde pequeninas”, recorda Gabriela. Embora não atribua a dificuldade em ser aceite à cor da pele, o que é um facto é que os alunos brancos, com quem sempre conviveu ao longo da vida, não a deixavam aproximar-se e foi quase “obrigada” a ser amiga de uma aluna africana, com a qual não se identificava, por viverem em mundos diferentes.

“Essa menina tinha uns ciúmes brutais da Gabriela, porque não entendia como esta podia ter dois pais que a amavam e por não ter dificuldades económicas”, relata Sofia Duarte. “Um dia, a irmã dela veio ter comigo, com uma amiga, e deu-me um estalo”, recorda Gabriela. “Não chorei, não reagi, mas fui fazer queixa à Direcção.”

Intervalos e almoços sozinha
Face à dificuldade em integrar-se, Gabriela passava os intervalos junto ao portão, a ver as pessoas a passar na rua, e almoçava sempre sozinha. Tinha, então, apenas 10 anos e uma resistência psicológica à prova de bala. “Comia devagar, para o tempo passar mais depressa”, conta. “Doeu, mas pensava sempre que ia passar.”

E passou. Mas, apenas ao fim de um ano. “No 6.º ano, como já me conheciam, não precisei de continuar a usar a mesma estratégia. Mudei de look e isso ajudou-me a integrar”, explica Gabriela. A sua preocupação em ser bem aceite levou-a a descurar as notas, mas essa era uma batalha que não queria voltar a perder. “Ainda hoje me preocupo com o que as pessoas mais próximas dizem de mim e detesto quando estão chateadas comigo.”

No 7.º ano, deu-se a sua integração plena. “Pôs extensões no cabelo, arranjou um namorado muito giro, deixou de ser maria rapaz e passou a ser popular”, conta a mãe, orgulhosa. “O namoro foi importante, porque lhe aumentou a auto-estima e a ajudou a ser mais bem aceite socialmente”, acrescenta. “Neste momento, as amigas valorizam-na pelo que ela é”, diz, com um sorriso nos lábios.

Leia mais na edição impressa ou torne-se assinante para aceder à versão digital integral deste artigo.