Sociedade
Os “Caras-de-cu” mataram-no e o povo saiu a enterrá-lo
O “fiel amigo” foi morto. Foram “esses caras-de-cu, esses filhos da Maria Malvada, esses Banqueiros” que o denunciaram e levaram ao óbito. Restou ao povo do Soutocico cumprir a tradição e enterrar o bacalhau. Saiba quem venceu o concurso fotográfico
A chuva não demoveu a multidão que quis presenciar a deposição do bacalhau em cova funda. Aliás, o grau de humidade sentido na noite do sábado passado, não fugiu às medidas tradicionais de outros anos e, em vez de “enterro do fiel amigo” o Soutocico bem poderia passar a chamar este grande teatro humorístico de rua de “grande demolha do bacalhau”.
A noite começou era ainda tarde, com o V Congresso (gastronómico) do Bacalhau, onde o prato mais comentado e alvo de maior número de graçolas foram as famosas e típicas “caras-de-cu”, feitas a partir do celebrado – e salgado – peixe seco que outrora era alimento de casas pobres e hoje, por força dos tempos, é uma iguaria cada vez mais onerosa. O respeitinho é bonito!
Numa enorme manifestação profana e quase herética, o bacalhau enterra-se, regularmente, para as bandas do Soutocico, já com um pé a meio da subida para a sacro-santa cidade-santuário de Fátima, a cada quatro anos, desde 1992. Antes disso há registo de uma primeira edição deste grito de revolta pós-quaresmal em 1938 e de mais quatro: 1976, 1977, 1980 e 1983.
Os 38 anos de interrupção, entre a primeira e segunda edições, devem-se a uma terrena proibição ordenada pelo cunho de Salazar e do seu Estado Novo, onde o respeitinho era bonito e tinha de ser bem observado e feito cumprir.
Não se podia ter o povo a pensar pela sua própria cabeça e a criticar costumes antigos. Durante quase quatro décadas, o Bacalhau lá foi andando, como Portugal: “co'a cabeça entre as orelhas”, como canta Sérgio Godinho.
Finda a repressão salazarista, a recuperação da tradição aconteceu pela mão do Clube Recreativo e Desportivo do Soutocico, que assume, desde então, a organização e promoção do Enterro do Bacalhau, envolvendo a população da aldeia e, este ano, também voluntários de colectividades vizinhas.
Pecados de boca
Na noite do passado sábado, pelas rua das aldeia desfilaram cerca de 300 figurantes e personagens entre padres, freiras, carpideiras, um bispo, um sacristão, um coveiro, pescadores, varinas, padeiros, cangalheiros e músicos. Um cortejo fúnebre e muito profano, com gente a perder de vista, como é raro ver-se na terra, ao longo de um percurso de 1,5 quilómetros.
Como um relógio com a corda bem apertada e mecanismo oleado, esta verdadeira “via mundana”, pois de sacra apenas teve a aparência, fez quatro paragens para leitura dos sermões da Vida e Morte do Bacalhau, Testamento do Bacalhau, Exéquias do Bacalhau e, por fim, a Queima do Judas.
A efígie do traidor do grupo dos 12 apóstolos foi mesmo enforcada numa bíblica figueira, tal como relata o livro oficial da cristandade sobre o fim dessa odiada figura das Escrituras. A Marcha Fúnebre de Chopin era a música de fundo, mas havia também ladainhas dos padres e freiras e o choro falso das falsas carpideiras de serviço.
Com a chuva a redobrar esforços para estragar o teatro de rua, o cortejo chegou ao fim, seguindo-se celebrações, bem comidas e bem regadas, pela noite dentro. O Bacalhau, esse, repousará durante mais quatro anos à espera da Ressurreição e de novo enterramento, fazendo regulares aparições quaresmais, sempre à sexta-feira.
Francisco Mendes venceu
Francisco Mendes foi o vencedor do Concurso de Fotografia JORNAL DE LEIRIA/Enterro do Bacalhau 2016, com uma série de 12 fotografias a preto e branco, em formato fotoreportagem, do grande teatro humorístico de rua que, a cada quatro anos, se realiza na aldeia de Soutocico (Arrabal), Leiria.
O júri, liderado pelo foto-jornalista do JORNAL DE LEIRIA, Ricardo Graça, elegeu o trabalho de Mendes valorizando características como o “discurso cénico”, “narrativa visual” e “linguagem jornalística” contidas nas imagens do velório e posterior enterro do “fiel amigo”. A descrição e argumento, episódio a episódio, construída nesta escolha de 12 fotogramas foi, para o fotógrafo, uma das grandes mais-valias do trabalho de Francisco Mendes submetido a apreciação.
O equilíbrio dos tons mais escuros e mesmo das ausências de luz e cor, num mosaico xadrez alvi-negro, alternando a luminosidade com a ausência completa de luz, bem como as expressões faciais e corporais captadas às personagens, acabaram por justificar a escolha do júri por este conjunto de imagens.
Como prémio, Francisco Mendes vai receber o livro Genesis, com trabalhos escolhidos do foto-jornalista Sebastião Salgado, editado pela Taschen e oferecido pelo JORNAL DE LEIRIA. O colectivo resolveu atribuir ainda duas menções honrosas a Rafael Silva e a Marcelo Brites.
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