Abertura

"Os incendiários não tiram férias!"

30 jul 2021 17:00

Alerta | A vigilância florestal é um trabalho de bastidores, mas que é a primeira linha de defesa da guerra contra os incêndios que, graças ao desordenamento do território e comportamentos de risco, e potenciada pelas alterações climáticas, deverá agravar-se nas próximas décadas

Jacinto Silva Duro

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Num espaço pouco maior do que uma cabine telefónica, o vento assobia, constante, pelas frestas das janelas, numa sinfonia que, no alto da Serra de Alvaiázere, raramente se silencia. É uma espécie de ruído branco que abafa tudo o resto e apura a concentração e os sentidos.

Agarra-nos pela mão e leva-nos para uma “zona de concentração mental”, onde o foco é a identificação do mais pequeno sinal de fogo no castanho e verde-escuro da floresta autóctone, à direita no horizonte, e na enorme mancha de verde-azulado das plantações de eucalipto, à esquerda.

“Estamos aqui, 24 horas por dia, sempre vigilantes”, conta Rui Nunes, o ocupante do posto.

Baixa o tom da voz, perde o interesse na conversa e anuncia: “querem ver que estávamos aqui a falar e temos aqui uma situação! Há uma coluna de fumo!”

Os binóculos, materializados instantaneamente nas mãos, são levados aos olhos. Identifica a direcção de onde uma nuvem clara toca no chão acastanhado, dirige-se para a mesa de ângulos, que ocupa todo o centro da torre, e com a ajuda da lente, traça o rumo do fumo.

A seguir informa a sala de operações do Comando Distrital de Operações de Socorro (CDOS), em Leiria.

“Aqui posto quatro, escuto? Informa coluna de fumo a 358. Escuto?” O CDOS pede a equidistância e entra imediatamente em acção, coordenando o esforço de aferição do grau de perigo e a localização exacta da ocorrência.

Para isso, junta os olhos de outros homens e mulheres, posicionados noutras torres de vigia, e ainda sofisticadas câmaras de alta resolução, operadas a partir da capital do distrito.

Além da rede de vigilância que é guarnecida pelos métodos convencionais, com operadores humanos, existe em todo o País uma rede destes dispositivos, posicionados em zonas estratégicas e em locais onde não há guarnição humana.

“Isto traz-nos uma complementaridade necessária para o apoio à decisão de envio de meios que serão disponibilizados em caso de ocorrência”, explica o capitão Ricardo Vieira, chefe da secção do Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente (Sepna), do Comando Territorial da GNR, em Leiria.

As câmaras da GNR têm uma capacidade de operação de até 30 quilómetros, com recurso a sistemas ópticos e térmicos.

Esta última característica permite uma optimização de operação durante a noite, uma vez que os operadores do CDOS conseguem “ver” no escuro todas as fontes de calor e origem de ignições.

Ricardo Vieira enfatiza o papel do acompanhamento humano, uma vez que este é imune aos imponderáveis e avarias, ao contrário da tecnologia.

A vigilância florestal é um trabalho feito nos bastidores, por uma grande equipa de homens e mulheres, muitas vezes, sem a glória nem o reconhecimento dado a outros profissionais, não sendo, porém, menos importantes na salvaguarda de vidas e bens.

É uma missão desempenhada sem que a maior parte do público sequer se aperceba.

Sempre em alerta Rui Nunes é vigilante há seis temporadas. Começou no Verão de 2015. Durante a época de incêndios, faça chuva, faça sol, haja vento ou calmaria, todos os dias, sobe ao seu ninho, no posto de vigia localizado no cume da Serra de Alvaiázere.

Faz parte da larga equipa que, 24 horas por dia, se dedica a detectar possíveis focos de incêndio, comunicando-os o mais rápido possível ao posto de comando da Protecção Civil distrital, em Leiria, para que este possa orientar os meios para o combate.

Com olhos de águia, Rui e os colegas perscrutam o azul, em busca da mais ínfima pluma de fumo. É, garante o vigia, “uma missão”, porque “os incendiários não tiram férias!”

Fim do eucalipto e promover espécies mais rentáveis
Na semana passada, o primeiro-ministro António Costa anunciou, na Pampilhosa da Serra, a criação de áreas de gestão de paisagem (AIGP), financiadas pelo PRR. “O objectivo é criar uma nova paisagem, que interrompa as áreas de pinheiro e eucalipto e permita introduzir outras culturas que gerem mais valor para os seus proprietários e tornem o território mais seguro”, explicou o governante. As primeiras 47 AIGP estão a ser criadas em zonas onde predomina a monocultura do eucalipto. Na região, para já, estão previstas em Alqueidão da Serra (Porto de Mós), Ribeira de Mega (Pedrógão Grande) e Aguda (Figueiró dos Vinhos). Os proprietários de terrenos nestes locais receberão fundos para a plantação de floresta autóctone e de maior rendimento do que o pinheiro ou eucalipto, na esperança de que isso promova o abandono destas monoculturas, que têm contribuído para a multiplicação de incêndios descontrolados em todo o País.

Mal avista o mínimo sinal de problema, identifica o azimute e comunica imediatamente, via Siresp, para a sala de situação do CDOS.

Aí, os operadores contactam outros postos ou, com o auxílio de câmaras, fazem a triangulação, para obter a coordenada exacta do fogo, antes de alocarem os meios necessários, que podem ser carros de bombeiros ou meios aéreos, a partir das pistas de Figueiró dos Vinhos, Pombal ou Porto de Mós (Alcaria).

Sempre que saem de turno, os vigias executam um ritual que resulta de anos de experiência. Ainda antes de a rendição entrar pela porta da torre e já com a lancheira que guardava a “bucha”, na mão, dão uma última volta em redor com os binóculos.

Por vezes, este momento é crucial para detectar um fogo ainda a começar.

“Há dias, aconteceu-me. Fiz logo sinal ao colega que me ia substituir para não subir e dei o alerta. Acredito que o atraso provocado pela troca, poderia ter consequências graves... basta uns minutos para um fogo crescer.”

Câmaras, torres e drones
Os postos de vigia, no distrito de Leiria, estão organizados numa rede primária, que arranca no início da ida para o terreno do dispositivo de combate a incêndios, a partir do mês de Maio de cada ano e estende-se até Novembro.

“Esta rede primária está colocada em locais com excelentes condições de visibilidade. Há três no distrito de Leiria e são em número menor do que os da rede secundária. Essa, inicia operações com o arranque do 'período crítico', no primeiro dia de Junho até ao último de Setembro.”

Esta fase conta com muitos mais olhos no terreno, distribuídos por 17 postos de vigia no total, os três da rede primária e os restantes da secundária. O funcionamento é igual em todo o País.

Postos de vigia detectaram 158 fogos em 2020
Em 2020 Posto de vigia detectam 158 fogos Segundo o Sepna, em 2020, foram registados 875 alertas de incêndio rural pela EMEIF, da GNR, no CDOS de Leiria, resultando em 353 incêndios rurais confirmados. Dos 875 alertas geridos pela EMEIF, 411 correspondem a 1.º alerta, 186 a 2.º alerta, 117 a confirmações, e 153 a falsos alarmes. Só os Postos de Vigia em 2020 foram determinantes para a confirmação de 158 incêndios nascentes, dos 353 registados no distrito. Os restantes registados resultaram de outros tipos de alerta.

Ao longo do ano, o Serviço de Protecção da Natureza e Ambiente, da GNR, conta com equipas em todos os destacamentos territoriais e no comando, em Leiria.

É um corpo que congrega, além de militares da guarda, elementos que pertenciam ao antigo corpo da Guarda Florestal.

Máquina complexa e rotinada
A coordenação das acções de prevenção operacional é feita através das Equipas de Manutenção e Explora- ção de Informação Florestal (EMEIF) da GNR, que funcionam junto de cada um dos 18 CDOS.

Na sala de situação do CDOS, localizada no sopé do Castelo de Leiria, a cerca de 50 quilómetros de distância do posto na Serra de Alvaiázere, o operador define as coordenadas da ocorrência e dá início ao passo seguinte do combate ao fogo.

Alexandre Afonso guarda da GNR no CDOS Leiria, senta-se em frente a vários monitores de computador que lhe fazem chegar imagens de câmaras no terreno, mapas topográficos e informações várias.

Ao fundo da grande sala de operações, uma parede está coberta por grandes ecrãs alimentados pelas várias câmaras da rede de vigilância, que passam imagens de vários pontos do distrito.

Para quem conheceu o cenário que potenciou os grandes fogos de 2017, no nordeste do distrito de Leiria, a imagem emitida a partir de Ferrarias de São João, a poucos quilómetros de Pedrógão Grande, é um aperto no coração.

Vêem-se mais filas intermináveis de jovens árvores verde-azuladas. Parece que a mensagem, repetida até à exaustão pelos políticos, de que tudo iria mudar e a floresta iria ser ordenada, perdeu-se antes de chegar à zona afectada pelos incêndios que mataram, segundo os números oficiais, 66 pessoas.

Os eucaliptos replantados e viçosos estão por todo o lado. Mas a missão da GNR, dos vigilantes e do CDOS é tentar impedir que os fogos tudo transformem em cinza, não é fazer ordenamento do território. Essa missão cabe aos poderes central e local.

Após um alerta ser confirmado, o guarda Alexandre informa os operadores do CDOS para que accionem os meios mais indicados, os helicópteros ou as equipas terrestres de bombeiros.

Em simultâneo informa a sala de situação para que esta envie a patrulha da área de jurisdição: a GNR ou a PSP. A máquina é complexa, mas já está bem oleada e rotinada. “Até conhecemos o mapa de cor”, brinca o operador.

Essencial é também a coordenação com os outros comandos territoriais da GNR. O trabalho em equipa com Coimbra, Castelo Branco, Lisboa e Santarém é crucial para a missão. Entreajudam-se e detectam até fumo no território dos vizinhos.

Ao lado da secretária do operador da GNR no CDOS, o capitão Ricardo Vieira faz notar que as manchas florestais do distrito são complexas, por serem compostas, maioritariamente, por resinosas e oleosas.

“Os locais mais críticos estão localizados nos concelhos do nordeste do distrito, no sul - municípios de Caldas da Rainha, Óbidos e Bombarral, e nas Serras de Aire e Candeeiros.”

Mas o chefe da secção do Sepna de Leiria tranquiliza a população, garantindo que a malha de vigilância e os meios de combate estão colocados de modo a fazerem frente a estas situações.

Na torre envidraçada do cume da Serra de Alvaiázere, Rui Nunes tem uma visão de 380º pelos montes e vales, abarcando com a vista uma paisagem que se estende da Serra de Sicó ao vale do Zêzere e um pouco mais além.

Deste local, o escritor Miguel Torga, escreveu num dos seus diários que é o “miradouro mais vasto de Portugal”.

O horizonte aberto dá-lhe razão.

“Temos de estar sempre alertas”, diz o vigia, com um pequeno encolher de ombros.

A missão é clara e concisa.