Viver

Os sinos em finais do século XIX

1 mai 2016 00:00

EstóriasdanossaHistória Ricardo Charters d’Azevedo

(Fotografia: DR)
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Em Leiria, musicalmente afinados, só tocavam os sinos da torre da Sé; no entanto ainda se escutavam os repiques de Santo Estevão, Sant’Ana e Espírito Santo. No século XIX, os sinos das outras igrejas, isto é, Senhora da Encarnação, Santo Agostinho, S. Francisco, Misericórdia e S. Braz, talvez por falta de verba para o respetivo sineiro, só se faziam ouvir quando chamavam os fiéis para as missas que ali se celebravam, ou por ocasião das festas privativas dos mesmos templos.

Em todos os dias santificados, nas torres das quatro igrejas mencionadas em primeiro lugar, tocavam-se os três repiques do estilo após as badaladas das Trindades, pela manhã, ao meio dia e ao pôr do sol e ainda nas vigílias dos referidos dias, ao meio-dia e à noite.

Os sinos de Santo Estêvão e Sant’Ana eram tangidos pelas freiras dos respetivos conventos e o som, que deles se desprendia, tinha qualquer coisa de místico, dolente, como se as religiosas da ordem de S. Francisco, as primeiras, e de S. Domingos, as segundas, lhes imprimissem a austeridade do seu hábito, o fervor da sua crença.

Já não sucedia outro tanto com os repiques do Espírito Santo, barulhentos, desordenados, acionados por mãos nervosas e ossudas de um velho serventuário da igreja! Nos dias de grande gala e nos dias santos, a torre da Sé dava as horas das Trindades com as tríplices badaladas chamadas romanas, em que numa escala cromática intervinham todos os sinos.

Depois seguiam-se os três repiques do estilo quási sempre sobre motivos de músicas populares, exceto nos dias de grande gala, em que se escutavam os hinos nacionais e da família real. 

Nessa altura o sino grande era dobrado até ao alto, o que se fazia com o auxílio de mais pessoal, é claro, para anunciar os sermões das festividades, nos “sinais” chamados “reais”, que só eram tocados pelo falecimento de reis ou príncipes, de altos dignatários eclesiásticos a partir de cónegos, e no dia dos Fieis Defuntos, e ainda por ocasião das procissões que a esse tempo se realizavam em Leiria.

Havia um toque privativo para a missa das Almas, outro para a missa paroquial do meio- dia, outro para os batizados, outro para funerais de adultos, outro para os das crianças, que o povo chamava “sinais de anjinhos”, outro, no tempo do antigo bispado, para o coro da manhã e da tarde, outro para convocar a irmandade do Santíssimo, outro quando saía o Viático aos enfermos.

Outro ainda chamado “hino do Bispo” para indicar a saída e entrada do Prelado no Paço, outro para a reunião dos vereadores municipais em dias solenes e enquanto em cortejo eles andassem por fora do domus municipalis,finalmente, ainda outro para se encerrarem os estabelecimentos, às 9 da noite, no inverno, e às 10 no verão.

Creio que este último toque devia ser reminiscência dos tempos medievais, em que os mouros e judeus eram obrigados a recolher aos respetivos bairros pelo toque do sino de correr. Os sinos de Leiria emudeceram para sempre tais como os dos conventos de Santo Estêvão, de Sant’Ana e da capelinha de S. Braz, levados no turbilhão revolucionário ou inutilizados pelo camartelo do progresso.

O único sino da igreja de Santo Agostinho também emudeceu, mas ainda, lá no alto da torre, assistiu impávido às transformações sociais e como que protestando pelo seu silêncio— às vezes o silêncio é o mais eloquente dos protestos — contra a profanação da sua histórica igreja, a que se ligam tantas tradições.

Os sinos da Misericórdia, Espírito Santo, S. Francisco e Senhora da Encarnação, ainda se fizeram ouvir durante alguns anos. Os próprios sinos da Sé deixaram de ter os seus toques privativos, nem sequer, contrariamente ao uso dos grandes centros e humildes aldeias, tangem em dobres fúnebres por aqueles que deixaram o convívio terreno…

Texto escrito de acordo com a nova ortografia

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