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Palavra de Honra | A ilusão da comunicação não mediada pelo corpo é umas das doenças da modernidade

13 abr 2025 09:30

Isaac Raimundo, Professor de áudio e etnomusicólogo

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- Já não há paciência... para a tecnologia como o fim último! Como é que chegámos aqui? Onde é que perdemos a capacidade reflexiva e nos vendemos pelo preço mais baixo ao poder otimizador do pensamento que calcula? O Zé Mário tinha razão! “É sempre o progresso, sempre o progresso! E eu, pá?” O Heidegger bem avisou que a tecnologia se oculta, é velada no seu funcionamento. Não podemos nunca perder a serenidade que resulta da reflexão humana perante as coisas técnicas no mundo.

- Detesto... má educação! Sabem aquelas pessoas que falam por cima, como se não estivéssemos presentes? Também não me refiro ao uso de palavrões, porque eles são a transdução perfeita de emoções para o mundo físico! Os palavrões, epítetos, alcunhas e cognomes, a ironia e as fronteiras, e ainda o que está do outro lado das fronteiras, são ferramentas para a alma. Mas o que eu detesto mesmo é ver e ouvir cuspir no chão!

- A ideia... do azul-turquesa enche-me a alma! Não é um azul qualquer, mas aquele azul específico. Desejo secretamente encher tudo dessa cor. Bom, a cor não existe per si, não é palpável, não é material, não a poderemos nunca pesar nem andar com ela no bolso. Contudo, a ideia de azul-turquesa anda comigo, consigo ter a ideia dela de tal forma que a materializo, transporto-a, é-me.

- Questiono-me se... alguma vez as nações serão livres na sua autodeterminação. E questiono-me como seria essa sociedade de intervenção mínima entre as nações.

- Adoro... Pesto! A rotina de fazer pesto com pinhões bons, azeite incrível, manjericão fresco e sumo de limão daquele com um cheiro que fica a bater no meio da testa! Por bizarro que pareça, quando como pesto sinto-me uma pessoa melhor! Moralmente mais elevada! Como se aquilo me entrasse nos genes! É uma sensação incrível que me foge completamente à razão, mas cuja experiência não consigo negar.

- Lembro-me tantas vezes... dos cheiros com que cresci. O sótão que cheirava a pó e o cheiro dos tecidos nas gavetas da casa. Os primeiros livros cheiravam à tinta das ilustrações, mas lentamente começaram a perder as imagens e a cheirar ao papel acidificado. Adoro esse cheiro! Quando o meu pai me pegava ao colo eu enrolava os meus braços no pescoço dele para me deleitar no cheiro reconfortante do cabedal do casaco misturado com fumo e café. E depois havia o cheiro da manhã depois de uma noite relâmpagos, o cheiro do pêlo dos gatos da casa e o cheiro da lareira. E o cheiro da pele, o cheiro das pessoas, o cheiro das bocas. Poderia desenhar uma cartografia do meu mundo em cheiros, e não precisaria de papel.  Um mapa cujas coordenadas fossem os cheiros e o tempo.

- Desejo secretamente... um dia acordar pleno de mim no mundo com a clareza de saber a relação intrínseca que liga tudo e todos como a trama e uma malha. Desejo secretamente isso porque a sinto, quase lhe toco, mas nunca a experienciei totalmente. Contudo, já tive vislumbres.

- Tenho saudades... dos almoços de família. Tenho saudades daquela cumplicidade enlaçada pelos vínculos relacionais entre todos os membros. Parece-me que o sentido de união vivido nesses momentos constitui o melhor medicamento para uma série de maleitas que afligem o ser humano. A ilusão da comunicação não mediada pelo corpo é umas das doenças da modernidade.

- O medo que tive... de me esbardalhar todo no chão! Quando era adolescente ia apanhava pêras durante os meses de verão para ganhar dinheiro para aquelas coisas não essenciais. Acontece que estava no topo da escada, depois do topo da escada, em bicos dos pés, para conseguir alcançar aquela pêra que estava lá no topo da pereira. A pêra mais bonita de todas, pois claro! E, subitamente, a escada tombou, e lá fui eu a voar uns 3 metros até ao chão. Aterrei com o corpo direito e amortecido pela erva macia, todo o corpo ao mesmo tempo. Mexi-me e estava vivo, sem dano algum. Levantei-me e voltei ao trabalho.

- Sinto vergonha alheia... de estar num congresso e ouvir discursar temas sobre os quais os palestrantes são ignorantes. A técnica é simples, basta utilizar o jargão e palavras-chaves referentes ao assunto para parecer que se é versado.  Mas não é aquela ignorância de nada saber sobre os assuntos, mas a presunção de se achar conhecedor porque se leu um resumo. Existe um tempo necessário de aquisição, um tempo de ruminação e integração para que um assunto se adentre e se conheça par cœur (que é algo bem diferente de memorização).

- O futuro... é como o passado, mas não exatamente igual. É uma helicoide que a cada revolução não volta ao ponto de partida, mas assemelha-se à volta anterior.  Por esse motivo se diz que o futuro não é igual ao passado, mas rima com ele. Porventura perder o passado é arriscar perder o futuro.

- Se eu encontrar... um extraterrestre vou-lhe perguntar se ele gosta de vinho! E se ele tem amigos e se gosta de beber uns tintos com eles, uns queijinho e umas gargalhadas! Se ele gosta de umas azeitonas, uns pedaços de broa, um pão fresco para molhar no azeite. Se ele gosta de se sentar com outros seres da sua raça à volta de uma mesa a festejar a existência enquanto comem. Porque se ele me disser que não, que não gosta e que isso é ridículo, então o mais provável é eu encher-me de medo e fugir do extraterrestre!

- Prometo... qualquer dia publicar no domínio público as gravações mais engraçadas que já encontrei. Parte das minhas funções profissionais são a leitura de suportes áudio e vídeo obsoletos. Nessa medida, encontro frequentemente bloopers de gravações de áudio e vídeo que revelam as pessoas por detrás das figuras públicas. Sons e imagens que mostram as naturezas por vezes divertidas que se ocultam nos perfis mais austeros, ou as expressões sisudas e ansiosas atrás dos sorrisos de comediantes perante as câmaras. Existe sempre mais do que nos é imediato, e adoro explorar a complexidade que se anuncia nos pormenores e nas minudencias expressivas das vozes e dos corpos.

- Tenho orgulho... em ter crescido entre adversidades e ter vivido as provações que me trouxeram ao entendimento de mim no mundo. Tenho orgulho em ter sido testemunha consciente e presente em todas as situações, de conforto e prazer, de limite e horror. E tenho orgulho em ter sido acolhido por seres humanos maravilhosos, como também por convivido com seres vivos horrorosos. A todos devo a minha vida, e a todos devo humildade.