Viver

Pedaços da nossa história que o tempo emudeceu

1 mai 2016 00:00

CoretosDo mais rico ao mais modesto, estes ícones da cultura portuguesa têm hoje o silêncio como marca comum. Para muitos músicos e historiadores faz falta dar nova vida a estes senhores dos jardins

(Fotografia: Ricardo Graça)
(Fotografia: DR)
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(Fotografia: Ricardo Graça)
(Fotografia: Ricardo Graça)
(Fotografia: Ricardo Graça)
Daniela Franco Sousa

Recentemente o jornal Observador elegeu os 35 coretos mais encantadores do País. Entre os ilustres escolhidos figuram dois coretos do distrito de Leiria: o de Alvaiázere e o da Nazaré. O JORNAL DE LEIRIA foi saber por que razão se destacam estes “senhores dos jardins” e perceber que espaço continuam a ter estes e outros coretos na nossa região. E parece que há traços comuns.

Perfeitamente cuidados, estes espaços partilham a triste sina de ter emudecido à medida que a modernidade criou filarmónicas gigantes e transferiu os eventos públicos para outras zonas das localidades. No entanto, para todos eles, há uma esperança acarinhada por músicos e historiadores: que possam recuperar a atenção e a actividade artística de outros tempos.

A junção de sagrado e profano
Maria Adelaide Furtado, presidente da Al-Baiaz Associação de Defesa do Património, e que entre as suas pesquisas se dedicou também ao estudo do coreto de Alvaiázere, explica que os coretos representam um tipo de arquitectura que era corrente na Europa a partir do século XVIII, inicialmente até concebidos num tipo de construção temporária, destinada a eventos festivos de polifonia e restritos à nobreza.

“Em Portugal sinaliza-se esse tipo de construção efémera na celebração da família real a assinalar o nascimento de D. João VI”, especifica a investigadora. “Datam do século XIX os primeiros edificados em espaço público, em regra localizados em zona central, próximo das igrejas, destinados a exibições musicais por bandas militares ou filarmónicas, numa junção do profano e sagrado”, prossegue Maria Adelaide Furtado.

Com a Primeira República, refere a historiadora, proliferam os coretos, trazendo a música erudita para a rua, pois representa no pensamento liberal, o reconhecimento que a “música conduz à civilização dos povos”. “Em postais antigos da cidade de Lisboa, um coreto na Avenida da Liberdade no início de 1900 é legendado 'coreto' e em língua francesa como “pavillon de musique” (pavilhão da música), explica a investigadora.

“Em França, os coretos tinham a designação comum de “tribune de musiciens” (tribuna dos músicos) ou “kiosque à musique” (quiosque de música)”. Com a construção dos coretos no território nacional, e consequente incremento dos espectáculos musicais ao ar livre, surge também a moda dos passeios públicos, as tertúlias de jardim público e o aparecimento de quiosques, estes em regra de ferro forjado de linhas semelhantes aos coretos, destinados à venda de jornais, tabaco e outros produtos, sublinha Maria Adelaide Furtado.

De mercearia a posto de turismo
Quanto ao coreto de Alvaiázere, explica a investigadora, foi mandado erigir pelo benemérito comendador Cesário das Neves, por cedência do terreno pela Fábrica da Igreja em contrato com a Câmara e a Vigaria Geral, Diocese de Coimbra, tendo sido inaugurado a 24 de Junho de 1929. Está localizado no adro da Igreja Matriz, que foi reabilitado no ano anterior, em 1928.

Para Maria Adelaide Furtado, o edificado “é um interessante exemplo da corrente estética dominante, porque representa o típico coreto dos anos trinta do século XX e integra em simultâneo as duas características tipo: as funcionalidades do coreto e do quiosque”. Construído em alvenaria, o coreto de Alvaiázere tem na base uma construção térrea com porta e duas janelas e o acesso ao palanque superior faz-se por uma escadaria em caracol, descreve a investigadora.

O palanque aberto tem como protecção um varandim também de alvenaria, e oito colunas que suportam a cúpula, que termina encimada por uma lira, símbolo da música,em trabalho de ferro forjado, acrescenta a presidente da Al-Baiaz. “Saliento que o coreto de Alvaiázere com a beleza da cúpula e pináculo é exemplificativo da designação italiana 'cupola della música' ou 'abóbada esférica'”. A passagem do tempo foi ditando diferentes utilizações para o edifício. O piso térreo foi inicialmente quiosque.

Depois, conta o jornal Alvaiazerensede 26 de Maio de 1935, tornou-se estabelecimento de mercearias e vinhos. Já nos anos 50 foi espaço de distribuição de víveres aos mais carenciados, acção da Fábrica da Igreja. Nos últimos anos acolheu o posto de turismo, que recentemente cessou naquele local. Há muito que no palanque deixaram de se realizar concertos musicais, aponta a investigadora.

Mas para Maria Adelaide Furtado, “garantidas as indispensáveis condições de segurança e porque o coreto é um ex-libris da terra, e representa um espaço de identidade cultural”, todos gostariam de o voltar a ver como “espaço vivo e evidenciado pela população”. 

Aliás, salienta a presidente desta associação, “a Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial (UNESCO) aponta os espaços culturais como património a salvaguardar, bem como de entre outros patrimónios, as práticas e representações”. Assim sendo, “qualquer utilização na área da música faria todo o sentido, é um espaço cultural com memória e identidade colectiva”, remata a investigadora.

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