Sociedade

Portugal: um País púdico?

11 fev 2016 00:00

É das Caldas da Rainha? Tenha cuidado ao exibir por aí o popular falo que é um dos símbolos locais. Isso pode valer-lhe uma queixa na polícia. Já agora, nem sonhe publicar no Facebook quadros antigos com nus pois esses também estão sob o lápis azul

(Fotografia: Ricardo Graça)
Jacinto Silva Duro

Tem fotos suas a amamentar? Não as publique na rede social Facebook. Aparentemente, esse acto natural é do mais escandaloso e contra-natura possível e pode valer-lhe uma denúncia e bloqueio da sua conta por indecência.

É das Caldas da Rainha e gosta de loiça tradicional? O melhor é publicar apenas galos de Barcelos na sua rede social. Porquê? Ouviu falar no quadro Verdade Desvendada (1973), de Gianbattista Tiepolo, que Berlusconi, em 2008, quando era primeiro-ministro de Itália, mandou retirar da sua sala de imprensa, por se ver um mamilo, ou nas estátuas encaixotadas também em Itália quando, há duas semanas, o presidente da República do Irão, visitou o país?

Sensivelmente na mesma ocasião, o popular “falo das Caldas” – representação do órgão sexual masculino em cerâmica - também foi alvo de uma queixa na PSP, por atentado ao pudor.

O pudor, o preconceito e a confusão entre arte e atentados à decência são um tema actual e polémico, especialmente quando há choques de culturas. O politicamente correcto parece dominar de tal maneira que há mesmo quem fale de “censura” da sociedade contra as artes e cultura popular. Comecemos pelo princípio: as Sardas das Caldas começaram por ser uma versão mais “picante” das Sardinhas de Lisboa, exposição que junta vários artistas plásticos nacionais sob o pretexto de criar uma visão contemporânea da sardinha, promovendo turisticamente a capital.

Nas Caldas da Rainha, em vez das sardinhas, optou-se por abordar o tradicional falo e desafiar os criativos a dar-lhe um aspecto mais actual. Mas a segunda edição do chamado “milagre caldense” acabou com uma queixa na PSP .

Para alertar os artistas da cidade da realização das Sardas das Caldas, os promotores resolveram conceber e distribuir um cartaz, com um desenho estilizado do falo. Ora, um desses “milagres caldenses” foi parar à montra da papelaria Vogal, mesmo no centro da localidade.

“E houve um senhor que ficou perturbado porque a filha de 7 anos poderia ver 'aquilo'. Fez queixa na PSP e a reacção da polícia quando percebeu do que se tratava foi: 'mas querem o quê nas Caldas?'”, conta Isaúl Nicola Henriques, promotor do cowork Silos Criativos. A história das Sardas das Caldas começou quando, há uns anos, Gonçalo Fialho, aluno na Escola Superior de Artes e Design, de Caldas da Rainha (ESAD.CR), criou a Implosão, comunidade de Ilustradores das Caldas da Rainha e lançou o concurso à comunidade académica.

Nada mais natural, afinal, durante o percurso académico, os estudantes da ESAD.CR utilizam o falo como parte da imagética da instituição de ensino superior. Organizam até uma corrida de carros de rolamentos, onde os veículos têm a forma de… falos de corrida.

Este ano, Ana Martins e João Varela quiseram recriar as Sardas das Caldas. Entre os objectivos, estava a criação de um espaço com interpretações contemporâneas do falo das Caldas, nos Silos.

Pudor politicamente correcto?
A história, que acabou nos jornais, teve um lado positivo para a divulgação das Sardas das Caldas. A organização teve mesmo de estender o período de candidaturas até 10 de Fevereiro, dado o número de artistas plásticos que se mostraram interessados em participar.

“A exposição final está agendada para fins de Março”, adianta Nicola Henriques. O presidente da Confraria do Príapo – outra das designações possíveis para o falo -, Edgar Ximenes, lamenta o ocorrido e sublinha que é um “episódio inaceitável” nos tempos que correm, tanto mais que o objecto faz parte de uma tradição ligada à terra e sua cultura.

“Mas não é coisa nova. Sempre houve choques deste tipo com mentes mais moralistas. Durante muito tempo, os falos tradicionais, que servem como garrafa, nem sequer podiam ser vendidos abertamente”, recorda, afirmando que, na actualidade, há um sector da sociedade que se envergonha da tradição. Sobre este e outros casos onde uma suposta moral e até a violência falaram mais alto do que a arte ou a expressão popular, o ex-presidente da Feco - Associação de cartoonistas, caricaturistas, ilustradores, autores de BD e outros artistas gráficos, Zé Oliveira, afirma: “não é pudor algum. É censura determinada por uma mescla de medo, de ignorância e progressiva perda de referência.”

Por um lado, diz, trata-se de “medo”, porque “não queremos imaginar que nos possa acontecer o que tem acontecido em França, desde o massacre do Charlie Hebdo”. Por outro, é “ignorância”.

“Porque desconhecemos que os falos das Caldas, tal como os de Amarante, são resquícios de um culto ancestral da fertilidade, enquanto inegável factor da continuidade da vida, culto profano, no caso das Caldas da Rainha e menos profano em Amarante, porque relacionado com São Gonçalo, a quem as devotas pedem o milagre da fertilidade.”

Censura fascista e falsa moral
Para a antropóloga Cristiana Crespo, casos como a proibição de publicação de fotografias de amamentação e do quadro Origem do Mundo,no Facebook, ou a actuação italiana, face às exigências iranianas, mostram que a sociedade actual vive dominada por complexidades e contradições de difícil entendimento.

Lembrando que quem fez a queixa em Caldas da Rainha temia que tal símbolo chocasse a filha de 7 anos, a antropóloga aponta a existência de um conflito entre o “politicamente correcto” e a liberdade de expressão. “Sendo a liberdade de expressão o direito à opinião e sua manifestação, deveríamos poder agir e comportarmonos segundo o nosso padrão de valores e convicções. Contudo, já fomos muitas vezes apresentados à 'polícia do politicamente correcto': uma linguagem e comportamento que se pressupõem respeitadores e uniformes, de forma a evitar uma conduta discriminatória e sensível”, diz.

Cristiana Crespo sublinha que esse respeito e uniformidade, presente em muitos outros casos menos mediáticos, tem vindo a transformar- se “num jogo de poder utilizado pelas grandes massas”, tornando o debate social mais pobre e pondo em causa o que de mais rico há no contexto social: a individualidade e a liberdade de agir em consonância com o querer.

O filósofo brasileiro Luiz Felipe Pondé chega mesmo a apelidar a conduta do politicamente correcto como 'censura fascista e falsa moral'!”, enfatiza a antropóloga e traça uma relação com o caso ocorrido em Caldas da Rainha. “Sendo o falo um dos elementos representativos da tradição e cultura locais, a liberdade de expressão pode ser posta em causa por falsos moralismos levando à redundância do pensamento padrão e colectivo. E onde fica o 'eu' no meio disto tudo?”, alerta.

Já o sociólogo e investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Elísio Estanque, refere que a questão do pudor, contextualizada nas condições de vida de hoje, na era da internet, do poder mediático e das redes virtuais, “tem de ser analisada à luz de uma sociedade de consumo que passou a 'sacralizar' mais as catedrais do consumo e os reallity shows do que as igrejas”.

O investigador sublinha que a linguagem brejeira, a promiscuidade sexual e os corpos disformes da libertinagem foram, desde tempos antigos, “o espaço do pecado, da vagabundagem e da dissensão”. “Como mostrou François Rabelais e Mikhail Baktin nas suas obras sobre o Carnaval e a cultura popular do século XVI.” A ideia ter-se-á prolongado nos tempos modernos como uma “narrativa” que apela ao “hedonismo”, ou seja, ao prazer como o supremo bem que a vontade deve atingir, e condena ou rejeita os velhos preconceitos e estereótipos.

“Passou-se a sobrevalorizar o prazer, a diversão e os valores materialistas em detrimento do espírito religioso. Daí, que o materialismo seja triunfante e o mercado esteja a ter cada vez mais a primazia em relação aos valores morais, num tempo em que a força da Igreja Católica está em perda”.

Falo a Património da Humanidade?
A candidatura a Património da Humanidade do “Coiso das Caldas” até pode estar ao virar da esquina, tendo em conta que até a arte chocalheira, depois do fado, conseguiu que a Unesco lhe abrisse a porta. Brincadeiras aparte ou, forçosamente, devido a elas, o falo das Caldas é usado como personagem central de crítica social ou humor vernacular, como ficou bem demonstrado na Mostra Erotico-paródica das Caldas

 

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